Desconstruções de Burry Buermans ganham vida na morte de uma relíquia

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

Entre a destruição de um jornal do século XIX e o desmembrar de uma banda-desenhada erótica de 1975, Burry Buermans encontrou uma linguagem própria através de colagens de imagens antigas para construir a sua própria narrativa. Uma selecção de 20 obras do artista plástico belga vão estar em exposição na Galeria de Arte da Livraria Portuguesa entre 11 e 31 de Outubro. 

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“Primeiro tenho de destruir um livro na sua totalidade e depois, pouco a pouco, vou construindo para, no final, ter algo novo”, começa por dizer Burry Buermans ao PONTO FINAL, sobre o seu processo criativo, na véspera da sua primeira exposição em Macau. A “Exposição de Colagens de Burry Buermans | Retrospectiva” é uma selecção de 20 trabalhos do artista plástico belga, realizados com colagens a partir de livros antigos, revistas e jornais, cujos desenhos e imagens podem ir de 1874 até ao presente. A viver em Portugal há vários anos, Burry Buermans assume-se como um autodidacta no domínio das artes plásticas, apesar de ter experimentado várias formas artísticas, nomeadamente o teatro, até que, em 2012, fruto do acaso, encontrou o seu meio de expressão através das colagens.

“O primeiro dia em que fiz uma colagem foi no dia 19 de Janeiro de 2012, e foi uma coincidência porque foi um amigo meu que me pediu ajuda para ir a casa dele para fazer colagens com carros, porque ele queria fazer um livro sobre problemas de trânsito em Antuérpia, e pensei: vou lá. Não estava à espera de nada, e quando comecei a cortar imagens tive um ‘flashback’ em que voltava a ter seis anos de novo e estava na varanda dos meus pais a picotar imagens de revistas, e nessa altura lembrei-me que podia fazer isto por horas e horas”, recorda Burry Buermans ao PONTO FINAL.

“Depois apercebi-me, de repente, que finalmente tinha encontrado o que sempre quis fazer e nunca mais larguei, até agora. Foi uma coisa natural, o cortar imagens sempre do mesmo tema e para depois colar numa forma que tem a ver com o conteúdo. E gosto de jogar com o contraste da forma final e o conteúdo da obra”, frisou o artista plástico belga de 37 anos, para depois explicar porque prefere trabalhar com materiais antigos.

“Prefiro utilizar material antigo. Em Portugal, tinha muita sorte porque estava a viver em Lisboa e lá há a Feira da Ladra dois dias por semana, e ia lá sempre à procura de coisas, até ao ponto em que os vendedores já me conheciam. Às vezes, nem tinha de procurar muito porque eram os próprios vendedores que me chamavam e diziam-me que tinham livros para mim. Em Lisboa também há muitos alfarrabistas, e cada vez que viajo procuro sítios com livros antigos”, confessa Burry Buermans.

Outra maneira de abrir um livro

Movido pela adrenalina da descoberta de material novo em feiras de velharias e alfarrabistas, Burry Buermans revela que também é movido pelo que apelida de “caça”, ou seja, a procura por material “novo” que lhe permita materializar uma ideia. “Tenho uma ideia, depois a caça começa, numa obra que fiz estive à procura mais de dois anos, antes de finalmente encontrar um livro sobre rãs ou sapos venenosos, e encontrei numa livraria muito específica que só tem livros sobre natureza e arquitectura em Amesterdão. O livro era muito caro, mas, depois de dois anos à procura, tive de o comprar, e a primeira coisa que fiz foi destruí-lo”, dispara o artista plástico belga, com uma gargalhada.

Na opinião do artista plástico, a quantidade de combinações possíveis entre forma e conteúdo é infinita. Para além disso, ao usar desenhos, fotografias e imagens antigas, estes são reciclados de forma artística sendo a sua função e valor renovados.

“Para mim, não foi complicado destruir os livros para construir as minhas obras de arte, mas tinha muitas discussões com pessoas porque tinha revistas e jornais até 1874 em que me acusavam de ser doido por destruir estes objectos, alguns deles que podiam ser considerados históricos. Mas eu, quando encontro estes livros, jornais ou revistas, estão em sítios praticamente dados ao abandono. Se não fosse eu a pegar neles, de certeza que se iam perder na mesma, e eu vejo isso como: tens um livro que está perdido numa estante em que é aberto, talvez, uma vez, e depois fica lá uma década sem que ninguém lhe pegue e para mim é uma maneira de abrir o livro, colocá-lo na parede e expor o que está lá dentro. Por exemplo, na colagem do Mickey e da Minie (duas das peças em exposição) tenho uma colagem com livros originais do Guido Crepax, de 1975, e o livro em si era mesmo um livro de coleccionador. E destruí-o…”, diz Burry Buermans, com um misto de tristeza e conformidade.

Depois da recolha de material e da escolha das páginas, as imagens seleccionadas são cortadas à mão, sendo depois agrupadas com detalhe, numa determinada forma escolhida. Para cortar papel, Burry Buermans utiliza várias facas e tesouras de precisão, de acordo com o tipo de papel e a sua eventual forma. No entanto, por vezes, acontece o inesperado, como relata Burry Buermans.

“Sempre gostei de velharias e de coisas antigas, o cheiro do papel, por exemplo, sou uma pessoa muito nostálgica, nunca gostei de carros novos, sempre gostei de carros velhos, acho que é porque uma coisa já usada, mais velha, dá para ter muito mais fantasia sobre a história desses objectos, as pessoas que já leram o livro, de onde vêm. E também é muito importante para mim trabalhar com livros originais, porque senão poderia ir ao Google e procurar imagens e imprimi-las, mas é muito importante para mim ter o livro original. E isto quer dizer que tenho um lado em que tenho uma imagem que quero usar, e depois viro a página e no outro lado há outra imagem que me interessa, o que por vezes me obriga a esperar até ao último momento para me decidir sobre qual imagem vou usar. E até tenho um caso em que encontrei o mesmo livro e nesse caso consegui usar as duas imagens que queria que estavam dos dois lados da mesma página”, recorda o artista plástico belga.

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

O todo pode ser mais do que a soma das partes

Burry Buermans parece escolher deliberadamente formas reconhecíveis que provocam reações no espectador, como por exemplo uma moldura em forma de javali que depois alberga em si um conjunto de imagens com ilustrações de batalhas na Bélgica durante as duas grandes guerras mundiais. O olho do observador é primeiro levado para a forma da colagem e, em seguida, para o seu conteúdo, feito de imagens detalhadas que estão em contraste com essa mesma forma.

“Sim, procuro contar histórias através das minhas colagens. Eu gosto de esconder pormenores nas obras porque muitas pessoas quando vão ver uma exposição passam lá, dizem que é giro, mas passam lá e vêem tudo em 15 minutos. Mas também há outras pessoas que levam mais tempo a analisar e ficam à frente de uma obra quase 10 minutos e para jogar com isso gosto de introduzir pequenos pormenores. Na Batalha das Ardenas, no Sul da Bélgica, havia um pelotão que tinha o símbolo do Javali, e como tenho muito interesse no tema da Guerra Mundial, I e II, fiz com esse conceito”, afirma Burry Buermans ao PONTO FINAL.

“Às vezes tenho uma ideia e vou procurar livros com um determinado tipo de imagens, outras vezes surgem de forma espontânea, noutras tenho de pensar mais, porque quando gosto das imagens preciso de encontrar uma ligação e então há várias maneiras. Muitas das peças surgiram porque gostei das cores e da vibração desse tipo de imagens. Tem muitos pormenores, muitas cores, e dá para brincar com as diferentes imagens, é mesmo jogar, para mim é como um jogo”, refere Burry Buermans.

“Isto é um cérebro, o título é ‘Dream Machine’, e é feito à base de colagem de desenhos técnicos, de um livro belga, ainda tem algumas palavras em flamengo”, explica Burry Buermans ao PONTO FINAL, apontando com o dedo para outra das peças na exposição.

“O título é máquina de sonhos porque o cérebro é onde fabricamos os nossos pensamentos e os nossos sonhos. E eu tentei acertar cada linha que poderia ser um ‘blue print’ de uma máquina muito complexa. Na verdade, são mais de 20 obras, porque também tenho uma série com selos, que são também 20, em que retiro uma imagem de um selo e combino com outro selo para contar outra história. Aquelas são novas, são borboletas. São crânios feitos com borboletas no mesmo tema: amor, borboleta e a morte”, detalha Burry Buermans.

Por entre crânios repletos de borboletas ou desenhos técnicos de engenharia minuciosamente alinhados em forma de cérebro, a exposição de Burry Buermans vai, na verdade, para além das 20 obras, uma vez que cada objecto aloja em si milhares de pormenores perdidos no tempo, que ganharam uma nova vitalidade através do milagre da transmutação.

 

 

 

 

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