Yan Geling: “Um guião de um filme depende completamente do diálogo e da acção”

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A escritora e guionista Yan Geling (Fotografia: Su Tang)

O filme “A City Called Macau” é lançado hoje nas salas de cinema na China continental. A edição em português do romance que lhe deu origem, lançado em Março pela Praia Grande Edições, é a primeira tradução em língua estrangeira do livro de Yan Geling, que tem já vários romances adaptados ao cinema. Em conversa com o PONTO FINAL, a escritora e guionista conta os desafios da adaptação para o cinema desta obra e o papel da realizadora, Li Shaohong, na construção do retrato psicológico da personagem central, a angariadora de apostas, Mei Xiao’ou.

Cláudia Aranda

Três figuras femininas colocam-se no triângulo que liga o romance, o filme e a personagem central de “A City Called Macau”: a escritora e guionista do filme, Yan Geling, a realizadora Li Shaohong, e a protagonista, Mei Xiao’ou, uma angariadora de apostas de casino, que sobrevive num meio dominado por homens.

A estreia do filme “A City Called Macau” nas salas de cinema na China continental acontece hoje, 14 de Junho. A obra é uma adaptação do livro homónimo da escritora Yan Geling e a edição em português do romance que lhe deu origem, lançado em Março pela Praia Grande Edições, é a primeira tradução em língua estrangeira do romance. A cineasta Li Shaohong realiza o filme. A ante-estreia aconteceu em Maio.

O argumento, escrito a seis mãos, resultou da cooperação entre a escritora e outros dois argumentistas, explicou ao PONTO FINAL a autora, Yan Geling. “Eu sou apenas uma de três guionistas deste filme. Fiz a revisão do primeiro rascunho. Depois disso, foi completado por dois guionistas, homens, muito experientes e talentosos. Achei que num trabalho de cooperação entre uma escritora e uma realizadora, seria melhor recorrer a escritores para evitar que o argumento se tornasse excessivamente feminizado”, contou Yan Geling na conversa com o PONTO FINAL, mantida entre a China, onde se encontra presentemente a escritora, e Berlim, na Alemanha, de onde chegaram as respostas, em chinês, traduzidas para inglês, enviadas pelo marido de Yan Geling, Lawrence Walker.

 

O contexto deste romance “é amplo, o romance em si é bastante longo e os personagens são numerosos. As relações entre a personagem feminina principal e os três principais personagens masculinos são fáceis de descrever num romance. No entanto, torna-se um pouco mais difícil num filme de 120 minutos”, prosseguiu Yan Geling. “Um romance pode basear-se, em grande parte, num retrato psicológico para descrever como a protagonista lida com as três relações homem-mulher diferentes que mantém e esses vários personagens, mas um guião de um filme depende completamente do diálogo e da acção. Então, no final, só temos é que depositar toda a esperança na habilidade do realizador e dos actores”, adiantou a escritora.

No romance, Yan Geling centra-se nos sentimentos e emoções de Mei Xiao’ou, “uma mulher com os seus dilemas, as suas procuras, o seu lado luminoso e obscuro. Um pouco como Macau que, bem à maneira asiática, também possui um lugar positivo e negativo, um yin e yang: opostos que se complementam, dualidade que inclui todo o universo”, descreve o escritor português José Luís Peixoto, que assina o prefácio da edição em português da obra.

Da relação com Macau, o fascínio

É o marido, Lawrence Walker, a partir de Berlim, onde o casal vive, quando não está cada um em viagem, que descreve a forma como Geling constrói as suas personagens e enriquece as suas obras. “Ela segue muitos aspectos da sociedade chinesa contemporânea a partir do exterior, como os exames de entrada na universidade, a emigração, a vida familiar de hoje, a situação dos veteranos de guerra incapacitados, e entre estes assuntos está o fenómeno do jogo das altas apostas em Macau. Ela estudou o assunto e envolveu-se, com a ajuda de amigos ricos, que às vezes se juntam para jogos de tabuleiro em salas privadas e apostam alto. Ela também notou, e já foi dito que, além do dinheiro na mesa, os jogadores, frequentemente, apostam quantias ainda maiores ‘fora da mesa’”, relatou Walker.

Na sua pesquisa para este seu romance centrado na Las Vegas da Ásia, a escritora visitou o território por várias vezes. Visitas curtas durante escalas entre cidades. Estabelecia-se por uma ou duas noites, e caminhava. Entrou nos casinos, fez apostas ela mesma, ganhou na primeira vez que jogou na mesa de bacará, beneficiou da sorte de principiante, como se costuma dizer. Ganhou, e depois perdeu. Conduziu muitas entrevistas. “Numa ocasião, quando voltou de Macau, ensinou-me o bacará e jogámos algumas vezes”, acrescentou o marido.

Segundo Lawrence Walker, Geling teve sempre um fascínio por Macau, esta “pequena e pitoresca cidade colonial portuguesa no meio do Extremo Asiático”, que ganhou “um contraste ainda mais interessante, agora, que esta comunidade vive lado a lado com uma das maiores, mais sofisticadas e modernas operações de jogo do mundo”, afirmou.

A escritora e guionista, nascida em Xangai, publicou o seu primeiro romance em 1986 e, desde então, já conta com mais de 20 títulos traduzidos em várias línguas. A antiga pupila do Exército Popular de Libertação, ao qual se juntou com 12 anos, em plena Revolução Cultural, tem várias obras adaptadas ao cinema. O realizador chinês Zhang Yimou dirigiu “The Flowers of War”, de 2011, filme de grande orçamento que tem como pano de fundo o massacre e as violações em Nanquim, em 1937, pelas tropas do Império japonês, protagonizado pelo actor norte-americano Christian Bale. O filme foi adaptado a partir de “The 13 Women of Nanjing”, de Yan Geling. Outra obra realizada por Yimou é “Coming Home (The Return), estreado no Festival de Cannes em 2014, baseado no romance de Gelin, “The Criminal Lu Yanshi”.

Li Shaohong, mestre do feminino

A realizadora, Li Shaohong, nascida em 1955, em Qingdao, é uma das mulheres da Quinta Geração de cineastas chineses, saídos da primeira vaga de realizadores formados a seguir a Revolução Cultural na Academia de Cinema de Pequim, que se havia mantido encerrada a partir de 1966, ao longo de uma década, até reabrir em 1976.

Conta Yan Geling que conheceu Li Shaohong quando ela realizava a série de televisão baseada em “Dream of the Red Chamber”, obra-prima da literatura chinesa e um dos Quatro Grandes Romances Clássicos da China, escrito em meados do século XVIII.

“Naquela altura, a apresentadora de programas de televisão, Yang Lan, levou-me ao ‘set’ e sugeriu que eu desse a Shaohong alguns exemplares dos meus romances. Mais tarde, quando Shaohong descobriu que o filme e os direitos televisivos desses romances tinham sido vendidos, e todos a realizadores do sexo masculino, ela disse-me a brincar: ‘Você está a deixar os realizadores homens filmarem todos os seus romances. Quando é que me vai deixar, uma mulher, filmar um?”, descreveu a autora.

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Em Janeiro de 2014, na Feira Internacional do Livro de Pequim, quando Yan Geling apresentou o seu romance sobre Macau numa conferência de imprensa, escritora e realizadora voltaram a encontrar-se. Foi nesta altura que Shaohong decidiu realizar o filme. Mas era preciso ainda que a obra cinematográfica passasse pelo crivo apertado da censura. “Naquela época, eu não acreditava realmente que o filme passasse pela censura. Senti que Shaohong era muito corajosa e estava a embarcar num grande empreendimento, como se entrasse numa grande aposta, porque no final era tudo muito incerto, se o filme passaria pela censura. Apenas recentemente descobri que ela investiu um enorme esforço nesse assunto e passou muitos dias de ansiedade e noites sem dormir. Ou como ela diz: ‘Gastei mais tempo a tentar passar o filme pela censura do que na edição!’”, relata a escritora, citando a cineasta.

No entender de Yan Geling, a cineasta Li Shaohong “é notável” nos “retratos requintados de personagens femininos”, pelo que nunca teve dúvidas sobre a “genialidade” da realizadora para dar vida à complexa personagem “Mei Xiao’ou”, a agiota e angariadora de apostas de casino.

“Penso que ela deveria ser considerada como a melhor realizadora na China nesse aspecto. O público lembra-se de sua série de TV ‘The Mandarins are Ripe’ e o filme ‘Rouge and Powder’, no qual as personagens femininas são maravilhosamente retratadas e de maneira rigorosa. Eu não tinha absolutamente nenhuma apreensão sobre como ela iria lidar com a personagem principal feminina, no filme”. Para Yan Geling, o maior privilégio de trabalhar com Li Shaohong foi que esta realizadora tornou a heroína Mei Xiao’ou numa “personagem inesquecível da história do cinema”. “Fiquei especialmente tranquila quando Shaohong contratou uma actriz do calibre de Bai Baihe para retratá-la”, acrescentou. Bai Baihe, nascida em 1984, em Qingdao, Shandong, tal como a cineasta Shaohong, é actualmente uma das actrizes mais bem pagas na China. A actriz contracena com actores como Huang Jue e Wu Gang, com carreira estabelecida na China continental, e os actores de Hong Kong, Eric Tsang e Carina Lau Kar-ling.

 

“Uma Cidade chamada A-Ma”, o livro na origem do filme

O livro “Uma Cidade chamada A-Ma” da escritora Yan Geling foi originalmente publicado em chinês, em 2012. A edição em português do romance, que deu origem ao filme, é a primeira tradução em língua estrangeira da obra. Foi lançado em Março pela Praia Grande Edições, durante o Festival Literário de Macau – Rota das Letras, com o título “Uma Cidade Chamada A-Ma”. Quando, em 2014, a autora foi convidada para apresentar o romance no Festival Literário de Macau, Yan Geling afirmou que a escrita “é um suplemento e uma extensão da psicologia. É um meio que usa as palavras para descrever o que os seres humanos pensam sobre si mesmos”. O escritor José Luís Peixoto, que assina o prefácio da edição em português, classifica a obra como “uma oportunidade” para ir além das fronteiras invisíveis que separam os indivíduos que vivem e percorrem esta cidade. “Este romance é aquilo que, na sua natureza mais profunda, um livro deve ser sempre: uma ponte, uma linha entre nós e o outro. Faltam ainda muitas pontes como esta, que liguem o ocidente ao oriente. Macau é, sem dúvida, um dos espaços que mais poderá contribuir para essa ligação”, descreve o autor de “Cemitério de Pianos”.

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