Carlos Fiolhais: “A China é a fábrica da ciência mundial”

FOTOGRAFIA: IPOR

O físico, professor universitário e ensaísta diz que Pequim está a tomar a liderança do sistema científico mundial, porque percebeu que não há poder sem saber. Carlos Fiolhais diz que a passagem da China que copiava para a China que cria foi rápida. E esta é uma enorme fonte de poder.

João Carlos Malta

joaomalta.pontofinal@gmail.com

A ascensão chinesa na área da ciência foi rápida, e até chegar ao lugar de potência mundial não demorou muito também. Quem o diz é um dos mais conhecidos divulgadores do conhecimento científico de língua portuguesa, o físico Carlos Fiolhais — que esteve ontem de passagem por Macau para uma conferência no Instituto Português do Oriente— e que não hesita em afirmar que actualmente: “A China é a fábrica mundial de ciência”.

Em conversa com o PONTO FINAL, ainda antes da palestra inserida nas comemorações do 10 de Junho, em que veio falar do seu percurso profissional, Fiolhais constata que os chineses são já uma grande potência científica, mas que nem sempre foi assim. Ainda há muito pouco tempo eram vistos como imitadores. “Observavam muito bem, copiavam, e depois faziam mais barato. Hoje eles inovam e têm universidades que são muito competitivas”, explicita.

Aos argumentos qualitativos, o professor da Universidade de Coimbra junta um indicador numérico. “São quem tem mais artigos científicos publicados, não estou a falar da qualidade, mas em quantidade. Já ultrapassaram os Estados Unidos”, revela. “É uma potência nesse sentido. É quem fabrica mais ciência”, sintetiza, explicando que isto resulta da aposta de Pequim no conhecimento científico, porque as autoridades chinesas perceberam que sem conhecimento não poderá haver desenvolvimento.

O ensaísta português, ao ser questionado sobre se este emergir da China na ciência levará a uma mudança do sistema científico internacional, defende que este já está em transformação. Mas relativiza essas alterações. “Não podemos ver isto como uma nova Guerra Fria. Não se trata de duas potências que têm de se digladiar, porque a ciência une, não divide”, acredita Carlos Fiolhais. “Não há uma ciência chinesa, e uma ciência portuguesa ou uma ciência norte- americana. O electrão é sempre o mesmo”.

 

Quem domina a ciência tem o poder

 

Ainda assim, o professor universitário não desmente que ciência confere “um enorme poder”. “O poder de fazer”, concretiza. O homem que em 2005 foi galardoado com a Ordem Infante D. Henrique, não teme, no entanto, que este facto crie uma clivagem entre o Oriente e o Ocidente, porque defende que a “ciência é a mesma, o método é o mesmo, os conhecimentos a que se chega são os mesmos”. Num mundo dividido, compartimentado e separado por muitas coisas, como a cultura, as religiões, a geopolítica, Fiolhais entende que “a ciência continua a ser um meio de entendimento”. 

O cientista diz que olhar para a China e para o Oriente “como uma alavanca do mundo”, obrigava a que esse desenvolvimento fosse feito com base na ciência. “A forma principal de riqueza é o conhecimento”, sublinha. “Se hoje a China é uma potência, é porque usa da melhor maneira o método científico e pode tirar o melhor partido disso, podendo enviar sondas à lua ou pôr satélites no espaço”, explica.

 

Anomalia ou perigo?

 

Que a China está a pôr muitas fichas na investigação científica, não há dúvidas, mas há por vezes um “lado b” dessa aposta em massa. No final do ano passado, o mundo foi surpreendido pela revelação de um cientista de Shenzhen que anunciou ter ajudado a criar os primeiros bebés geneticamente manipulados do mundo. Seriam duas meninas gémeas – Lulu e Nana – cujo DNA ele afirmava ter alterado. He Jiankui foi prontamente censurado pelos pares por ter feito algo que consideraram ser “irresponsável e preocupante”. “Não sei se se lhe pode chamar cientista, ele desapareceu, e não se sabe onde está. Todos concordaram que ele quebrou algumas regras de procedimento ético”, defende.

A ideia de que esta situação só podia ter acontecido na China, onde a pressão é grande para que haja resultados, é algo que Fiolhais não subscreve. “Podia ter ocorrido noutro lado, porque as técnicas não são assim tão difíceis. Acontece na China talvez devido ao grande número de pessoas que trabalha a área da genética, que está muito desenvolvida, e, por isso, há uma grande probabilidade de acontecer aqui”.

O professor universitário diz que este caso mostra que há matérias que não podemos delegar apenas aos cientistas, nem sequer aos políticos, representantes do povo. “Todos nós devemos ser sentinelas nesta matéria, é aquilo que nos torna humanos. Estamos a tocar no humano. Podemos passar para dimensões em que se criam seres sobre-humanos ou sub-humanos. Não sabemos o que será isso. Espero que não saibamos”, atira.

Fiolhais lembra que “a ciência e a técnica sempre tiveram este lado do desconhecido, e, por vezes, do negro e do brutal”. “As escolhas sempre tiveram de ser feitas e o homem sempre teve de ter cuidado com elas”, enfatiza. O professor defende, a propósito do tema da genética, que o Homem tem um poder extraordinário nas mãos. E considera que o poder biológico é talvez “mais assustador”, do que no passado foi o uso da energia do átomo, lembrando a Segunda Guerra Mundial. “Uma coisa local, por muito catastrófica que seja, é local, a biologia encarrega-se de se expandir, e de forma rápida. E vai perdurar no curto, longo e longuíssimo prazo”, teme.

 

O espalhar da pseudociência

 

Como divulgador de conhecimento científico, Carlos Fiolhais está apreensivo também com a velocidade da propagação das mentiras e das ideias falsas relacionadas com a ciência. Não gosta de falar de sociedades de pós-verdade, porque diz que, como cientista, não sabe o que é a verdade. Trata-a como um axioma, um dogma, que está barrado a quem trabalha com a ciência. “É algo que não nos permite avançar”, assegura.

Além disso, tem também um problema com uso da palavra. “É muito difícil que a ciência diga o que é a verdade, porque funciona por exclusão”. “Como está sempre a fazer uma progressão e uma acumulação sobre certas coisas, não temos uma verdade definitiva, mas podemos dizer que o que sabemos hoje é mais forte do que sabíamos ontem. Isto porque alguns erros foram descartados”, exemplifica.

A ciência deu-nos a internet, mas não nos deu o manual para a usar, e, por isso, tal como nos põe no outro lado do mundo numa fracção de segundos, também pode espalhar uma mentira com a mesma velocidade.

“Estou preocupado, mas não tenho remédio, as coisas existem e as pessoas usam-nas para aquilo que querem usar. Estamos num processo que é muito recente, e é muito difícil de prever o futuro. Preocupado estou, mas não alarmado”, remata.

 

 

 

CAIXA

 

Uma charlatanice chamada terapias alternativas

 

Uma das lutas em que o divulgador de ciência Carlos Fiolhais mais se tem empenhado é contra as terapias alternativas. Não tem dúvidas em dizer que a homeopatia é uma “charlatanice”, porque, assegura, a ciência não compreende nem explica “que umas pastilhas feitas de água e açúcar” possam fazer curas de doenças graves. “Não podem ter efeito, é impossível que tenham. Já se experimentou e conclui-se que não têm. Não se pode iludir o real, a natureza é como é, e se não a reconhecermos estamos a enganar-nos ou a enganar alguém”, defende. Fiolhais não põe, no entanto, tudo no mesmo saco, e crê que “há outras terapias que mostram efeitos”. Mas que não são universais e falham “em algum tipo de populações”. “Não é tudo uma charlatanice, no campo das terapias alternativas. Temos é de ter cuidado, e o que tenho chamado a atenção é para que não se compre a banha da cobra, acima de tudo que não se usem meios públicos para subsidiar essas coisas”. Em relação à Medicina Tradicional Chinesa (MTC), muito em voga também em Macau, que está a apostar no desenvolvimento dessa área, Carlos Fiolhais observa que há muito conhecimento antigo, que é empírico, e que não esteve sujeito às restrições do método científico, mas que poderá vir a ser no futuro. “É bom que isso seja tudo analisado pela ciência, e nem tudo o foi”, explica. O cientista lembra o caso da aspirina, que antes de ser feita em laboratório foi extraída de uma planta. “Pode acontecer que novos medicamentos surjam de práticas que não tenham origem científica”, acredita. O professor está atento ao que se passa em Macau, nesta área, e fala do laboratório de MTC que está a procura de moléculas com capacidades terapêuticas. “Estão a fazer todos os testes que têm de ser feitos”, explicita, lembrando também que já há uma laureada com o Prémio Nobel da Medicina que “conseguiu criar um medicamento para uma doença tendo por base uma receita da Medicina Tradicional Chinesa”.  Apesar disso, ressalva que as medicinas tradicionais não podem ser vistas como tendo todas o mesmo tipo de credibilidade. “São muito desiguais. Importa apurar que validade têm”, afirma. Fiolhais já chegou a afirmar que qualquer dia só falta dizer que “a medicina causa o cancro”, e entende que o sucesso de muitas destas técnicas se deve ao efeito placebo. “As pessoas quando estão a ser tratadas, e se alguém se interessa por elas, há uma percentagem estatística relevante que tem tendência a melhorar”, explica. “Se alguém me diz que não tenho nada, eu tendo a não ter nada. São efeitos dos neurotransmissores, que muitas vezes a ciência não conhece bem, mas que são reais”, conclui. J.C.M.

 

 

CAIXA

 

“O cientista tem a imaginação da natureza”

 

A vinda de Carlos Fiolhais ao Instituto Português do Oriente (IPOR), segundo o cientista, serve para marcar que a “ciência faz parte da cultura”, uma vez que esteve numa casa que tem um programa cultural, com iniciativas ligadas às línguas e às artes. “Verifico esta coisa a que a alguns parecerá estranho, mas para mim é banal, a de que a ciência aparece no meio da cultura”, identifica. Fiolhais defende que esta relação existe, porque a ciência é um meio de relação entre o homem e a natureza. “E o que é a cultura se não isso? Com certeza que a ciência e as artes são diferentes, mas há uma interacção que pode ser muito fecunda”, concretiza.  O professor da Universidade de Coimbra explorou depois esta relação, ao afirmar que, muitas vezes, os cientistas são vistos como sendo “uns extraterrestres que não vivem neste mundo”, e que a cabeça deles “está lá nas nuvens”. Mas defende que essa ideia não podia estar mais errada. “Os cientistas são os que mais estão neste mundo, porque são eles que procuram descobri-lo. São quem deseja saber como ele funciona”.

Para lá chegar, segundo Fiolhais, os cientistas precisam de imaginar como é o mundo, de fazer concepções sobre ele, e “uma delas estará certa”. Para isso têm de utilizar a arma dos artistas: “a imaginação”. “Têm de imaginar como é, para saber como é. A tal lampadinha das hipóteses. Há muitas, até que uma se acende”, ilustra. A comparação entre arte a ciência não fica por aqui. “O exercício da imaginação é comum ao artista e ao cientista. Ambos sonham, mas os artistas podem publicar todos os seus sonhos, e os cientistas têm de descartar todos os sonhos e ficar apenas com o que está de acordo com a natureza. Têm de ter a imaginação da natureza”, remata Carlos Fiolhais. J.C.M.

 

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