No “Vale de Bonecas” não há finais felizes, há quatro princesas e uma vida inteira a beijar sapos

Teatro "Das Entranhas"
“Vale de Bonecas ou life after the happy ending” (FOTO: EDUARDO MARTINS)

O PONTO FINAL esteve ontem com o elenco do colectivo d’As Entranhas e acompanhou alguns momentos do ensaio da peça de teatro “Vale de Bonecas ou life after the happy ending” ou o que acontece depois do beijo e do final feliz. Amanhã e depois, dias 15 e 16 de Novembro, às 20h30, na Hospedaria San Va, na rua da Felicidade, quatro actores vão recriar as histórias de quatro mulheres contemporâneas construídas a partir das personagens de contos de fadas, Branca de Neve, Cinderela, Bela e o Monstro e Bela Adormecida.

Texto: Cláudia Aranda

Fotografia: Eduardo Martins

“Já veio? Já fui beijada? Ele já veio?”, diz a Bela Adormecida, que acaba de despertar em sobressalto de um sono alvoraçado, de pé, mas enterrada numa pilha de almofadas pregadas à parede. Peruca loura desgrenhada, abre a porta do quarto 407 da San Va, espreita e volta a meter-se no quarto, corre, salta e pendura-se nas grades da janela. “Mas ele não me acordou? Acordava-me, puxava-me por um braço, uma perna, dava-me com qualquer coisa na cabeça, mas acordava-me!”, grita a princesa desesperada, rodeada pelos comprimidos que a põem a dormir.

No 303 da San Va, Cindy está junto a uma pilha de sapatos, que atira ao ar, um a um. “Não tenho nada que me sirva, nada à minha medida, este não serve, este também não, este basta olhar para ver que não dá, não entra, já lá vai o tempo, uma vida inteira a beijar sapos à espera que se transformem em príncipes, do tal, o príncipe, o prometido, que ele venha numa manhã de nevoeiro salvar-te”, lamuria a Cinderela.

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“Vale de Bonecas ou life after the happy ending” (FOTO: EDUARDO MARTINS)

A Bela e o Monstro, blusa branca apertada no pescoço e calça cinzenta, sentada na ponta da cama do 307 devaneia. “O meu sonho é que ele, um dia, publique um anúncio onde peça perdão por todo o mal que fez. No meu sonho eu consigo falar com ele, poderia ser por Skype, por Skype é seguro, as pessoas não se tocam, não se sentem, não se batem, e ele dizia, ‘chéri, perdoa-me, sou um monstro’”, diz a princesa de a Bela e o Monstro para, de seguida, despertar para a realidade: “Tenho de conseguir mesmo este emprego”, diz, enquanto veste o casaco e sai porta fora.

Perturbada, ainda com a personagem incorporada, a actriz Lavínia Moreira, explica que foi o encenador e director artístico, Ricardo Moura, que propôs a Bela e o Monstro como princesa. “Fizemos umas improvisações e acabámos por ir parar à questão da violência doméstica”, explica. Ela está fugida, mudou o nome, os três filhos já cresceram. Mas ela às vezes entusiasma-se com o sonho e a memória antiga, da vida de princesa, de quando o conheceu. Depois, há a vida real, ela tem três empregos, o dos domingos, no ‘call center’, mas também passa a ferro e lava as escadas para ter desconto na renda.

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“Vale de Bonecas ou life after the happy ending” (FOTO: EDUARDO MARTINS)

A vida depois da felicidade

Não há finais felizes no espectáculo “Vale de Bonecas”, que conta a história de quatro mulheres, depois dos 40 anos, a partir de personagens dos contos de fadas e das princesas da Disney, “Branca de Neve”, “Cinderela”, “A Bela e O Monstro” e “A Bela Adormecida”. Amanhã e depois, dias 15 e 16 de Novembro, a partir das 20h30, a Hospedaria San Va, na Rua de Felicidade, com entrada pelo número 67, vai ser palco da peça “Vale de Bonecas ou life after the happy ending”, uma produção d’As Entranhas Macau, extensão do colectivo de teatro estabelecido em Portugal, em 1999.

“O que nós quisemos foi dar uma continuação à história, se nos lembrarmos das histórias da Disney, e dos contos de fadas, dão um beijinho e são felizes para sempre. Mas será que foram felizes? Podem não ter sido. Pegámos nas características das princesas e imaginámos o que lhes aconteceu depois”, explica Ricardo Moura.

O número de lugares por cada dia de espectáculo é limitado a 40 pessoas, distribuídas por grupos de 10, que vão ser conduzidas por cada um dos quartos da hospedaria onde decorre o espectáculo, quatro monólogos de 20 minutos cada, interpretado por cada uma das princesas.  No total, o espectáculo dura uma hora e meia.

“Para os actores é um bocado violento, mas também é um bom exercício, nós repetimos quatro vezes a mesma coisa, mas o público, cada grupo, só vê uma vez, uma princesa diferente”, afirma Vera Paz, que representa Branca de Neve, a “Branquinha”, que diz ser uma “beata perversa”.

No quarto 205 da San Va, Branquinha, de saltos altos, avental curto e alça descaída a revelar-lhe a roupa interior, descasca maçãs para mais uma roda de encomendas de tartes. Esta princesa vive rodeada de santas e ‘bibelots’ beatos, há estátuas e calendários da Nossa Senhora, uma imagem amarrotada do Menino da Lágrima colada à parede, um disco single, em vinil, do cantor romântico Júlio Iglésias. Branquinha é uma mulher que foi abandonada e vive na esperança de encontrar alguém, não tem dinheiro nenhum, nem família, é explorada pelo velho proprietário da pensão, sobrevive a fazer tartes. Sonha em ir a Sevilha, porque foi o que “o príncipe” lhe prometeu, ir a Sevilha, descreve Vera Paz.

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“Vale de Bonecas ou life after the happy ending” (FOTO: EDUARDO MARTINS)

“Um actor é o que ele quiser”

Os textos são uma criação original dos intérpretes, com excertos de textos de Adília Lopes, compilados e adaptados de “DOBRA – Poesia reunida, 2014”. Lábios vermelhos, cabelo e calças cor-de-rosa, túnica de lantejoulas e mocassins dourados, Cindy é “Cinderela”, de voz grossa e barba feita, representada por Luís Hipólito. “Esta Cindy, não sei muito bem se é uma mulher ou homem, uma vez uma criança de sete anos perguntou à mãe, que é nossa amiga, ‘mãe, é um homem ou uma mulher?’, e a mãe respondeu, ‘é um actor e um actor é o que ele quiser”, diz Luís Hipólito. Conta que, para esta princesa, inspirou-se nas viagens de autocarro em Lisboa, nas conversas que ouve. Um dia foi parar a um subúrbio de Lisboa e, então aí, “a Cindy cresceu muito”. “Esta mulher ou este homem está de facto muito desesperado porque foi abandonado, tinha uma vida principesca e de repente dá por si num T0 na Buraca a ter que trabalhar numa fábrica de sapatos para sobreviver, e a fábrica fechou, entretanto. A inspiração foi muito essa, do universo das fábricas de sapatos a fechar no Norte de Portugal, o período da crise, no país em geral, e a Cindy nasce daí, dessa raiva”.

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“Vale de Bonecas ou life after the happy ending” (FOTO: EDUARDO MARTINS)

Maria João Pereira é a Bela Adormecida, que tem uma relação bipolar com o sono, ora toma comprimidos para dormir, porque pensa que o príncipe virá para despertá-la com um beijo, ao mesmo tempo, receia perdê-lo enquanto dorme. “Nós partimos todos do mesmo princípio, de que não há ‘happy endings’ e esta mulher está desesperadamente e loucamente à espera do seu príncipe”, explica Maria João Pereira.

O espectáculo foi inicialmente apresentado em 2014 em quatro lojas do Teatro Turim, na altura um centro comercial, transformadas em instalações-cenário, tal como agora na San Va. “Este espaço da San Va também é inspirador, porque é um espaço com história e cheio de histórias. Nós agora vamos meter Portugal enfiado em 150 anos de história,”, afirma a actriz Vera Paz, referindo-se ao prédio da hospedaria construído por volta de 1870, e aos quartos pequenos, separados por paredes de madeira.

Ricardo Moura explica que o espaço, não convencional, fora dos teatros, é bastante importante. “Fazia sentido as princesas estarem encafuadas e fechadas nelas próprias e o que nós fazemos durante estes 20 minutos, que se repetem, é uma viagem ao interior destas mulheres, ao mundo delas, onde elas se expõem bastante”, conclui.

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