Pensão San Va, cenário de filmes, cresce enquanto espaço de cultura e abre portas ao teatro

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Anna Yip, que administra a pensão San Va, um negócio de família, propriedade da mãe, Irene Yip (FOTO: EDUARDO MARTINS )

São já dezenas os filmes e produções fotográficas que usaram os interiores da pensão San Va como cenário. A hospedaria, na Rua da Felicidade, fundada há mais de 80 anos, atrai desde há anos o interesse de realizadores de cinema como Wong Kar-Wai e Ivo M. Ferreira. Anna Yip, directora da pensão, que continua a hospedar viajantes e gente em negócios que procuram alojamento económico, afirma que a San Va quer crescer enquanto espaço cultural e revitalizar-se como edifício histórico. Nos dias 15 e 16 de Novembro, às 20h30, abre portas ao teatro, com a peça “Vale de Bonecas”, do grupo d’As Entranhas Macau, da actriz Vera Paz.

REPORTAGEM de Cláudia Aranda (Texto) e Eduardo Martins (Fotografia)

O senhor Kam, funcionário da Pensão San Va há 30 anos, lembra-se bem de quando o realizador de Hong Kong, Wong Kar-Wai se instalou com a sua equipa para filmar “2046”, uma história sobre figuras solitárias e amores não correspondidos, que remete para o futuro e para um quarto de hotel, rodado por volta de 2004. “Wong Kar-Wai nunca tira os seus óculos escuros”, diz o senhor Kam, sessenta e poucos anos, rindo e fazendo o gesto de segurar os óculos, acrescentando que o realizador foi visitante regular do estabelecimento durante várias semanas. Wong Kar-Wai filmou em Macau partes de “In The Mood for Love” e a sequela, “2046”. “O que me interessa não são as relações entre o jogo e as tríades, mas o que resta do passado colonial de Macau ”, disse o realizador numa das vezes que visitou a cidade, sobre o interesse que o território lhe desperta.

Agora, depois de constituir cenário de muitas produções cinematográficas e actuações, o mais recente evento cultural a acontecer na Pensão San Va é uma peça de teatro, pelo grupo D’As Entranhas Macau, extensão do colectivo português, criado em 1999, dinamizado em Macau pela actriz Vera Paz, que apresenta “Vale de Bonecas”, nos dias 15 e 16 de Novembro de 2018, às 20h30. A peça narra “com humor e ironia” a história de quatro mulheres, depois dos 40 anos, na sua intimidade quotidiana, num prédio do subúrbio da cidade, explica Vera Paz numa nota à imprensa.

“Abrir o local para eventos culturais é a nossa intenção. Estender a mão à sociedade para promover, ajudar a desenvolver e popularizar a cultura tradicional é também o nosso objectivo”, disse ao PONTO FINAL Anna Yip, que administra a pensão San Va, um negócio de família, propriedade da mãe, Irene Yip. “Estamos abertos a todos os tipos de eventos culturais, sejam filmagens, ‘performances’ ao vivo, exposições, sessões de leitura, noites de cinema, é só sugerir. O nosso desejo é revitalizar este edifício histórico, tão distinto, e transformá-lo gradualmente numa residência-museu, para incutir vitalidade, juventude e atmosfera cultural. Acredito que, por sua vez, o edifício em si absorverá a energia positiva e durará muito com a força dos espíritos”, prosseguiu Anna Yip.

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Irene Yip (FOTO: EDUARDO MARTINS)

A San Va tem participado em várias actividades culturais, acrescentou a directora, referindo que já foram co-organizadores do Festival Fringe de Macau 2014, participaram em seminários sobre conservação e valorização do património histórico, assim como sobre “revitalização de zonas antigas injectando novos elementos culturais”, além de terem integrado eventos da Associação dos Embaixadores do Património de Macau. Por altura do Macau Fringe Festival 2014, a San Va foi palco de um espectáculo de dança. “O público, na rua, assistia ao ‘show’ virado para o hotel, onde os bailarinos dançavam nas três varandas do prédio”, explicou a directora da San Va. Noutra ocasião, os bailarinos usaram a fachada da San Va como pano de fundo para a dança. Também nas décadas de 1950 e 1960, explica Anna Yip, “havia noites de cinema regulares realizadas dentro da pousada. Um projector, ou qualquer coisa semelhante, era colocado dentro da pensão para mostrar os filmes na parede. Soube disto pelo meu pai e por antigos moradores da zona”, conta.

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FOTO: EDUARDO MARTINS

Memórias, ficção e realidade

“O Hotel San Va é um lugar onde facilmente podemos confundir as memórias com as ficções de que já tem sido cenário, através de diferentes olhares dos realizadores que por ali passam”, disse ao PONTO FINAL Vanessa Pimentel, realizadora do documentário “San Va Hotel – Os Bastidores”, produzido em co-autoria com Yves Etienne Sonolet. Foi essa “mistura entre a ficção e a realidade” que a atraiu a realizar o documentário, que aborda a história da pensão que se mantém aberta há mais de 80 anos, enquadrada nos bastidores da rodagem de “Hotel Império”, de Ivo M. Ferreira.

A Pensão San Va, situado no número 67 da Rua da Felicidade, tem a particularidade de manter a traça, não só na fachada, mas também na configuração dos interiores de quando foi transformada em pensão, por volta de 1930, sendo antes um clube privado. A atmosfera “vintage” do edifício, construído por volta de 1870 em arquitectura chinesa da época, com cerca de três dezenas de quartos, separados por paredes de madeira, recantos onde se chega atravessando corredores estreitos e pouco iluminados, tem atraído o olhar de vários cineastas, que procuram a pensão para local de filmagens.

Pang Ho-Cheung, também de Hong Kong, filmou aqui, por volta de 2004, “Isabella”, cujo cartaz esteve durante algum tempo na entrada da hospedaria, mostrando a protagonista, a macaense Isabella Nolasco da Silva Leong, a subir o lanço infinito de escadas de degraus estreitos, agora revestidos a cor verde, que só terminam no piso da recepção. A San Va é também cenário de “Butterfly”, rodado na mesma altura, da realizadora Yan Yan Mak, protagonizado por Josie Ho, filha do magnata do jogo, Stanley Ho. A produção centra-se na relação amorosa de Flávia, interpretada por Josie Ho, uma professora de liceu, casada, que conhece a cantora e compositora Yip, papel protagonizado por Tian Yuan. O filme foi exibido em Macau em 2014, durante o Festival Literário de Macau – Rota das Letras, com a presença de Tian Yuan.

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Senhor Kam (FOTO: EDUARDO MARTINS)

Alojamento “famoso” a preços económicos

Lá em cima, no topo das escadas, a fazer o ‘check-in’ e o ‘check-out’ aos hóspedes, está o senhor Kam. Por cima da sua cabeça voam as folhas do calendário sopradas pelas ventoinhas que giram lá atrás e no tecto. Junto às bandeiras de Macau e da China, há um altar iluminado e decorado a vermelho, uma laranja é a oferenda do dia para a figura protectora de Guan Yu. O general guerreiro da antiguidade chinesa é paradigma de lealdade e justiça, adorado na China continental, Taiwan, Tibete, Hong Kong, Macau e entre as comunidades no exterior, tornado divindade na devoção religiosa e omnipresente em lojas e estabelecimentos tradicionais chineses.

O funcionário Kam conta que há muita gente que chega à San Va atraída pelo facto de ser “um lugar famoso, porque são muitos os filmes feitos aqui e há muitas estrelas que por aqui passaram e muita gente quer ficar aqui por causa disso”, diz, enquanto passa a mão pelo balcão, como que a puxar o lustro. Kam, que também limpa e cuida do espaço, juntamente com o colega Stanley, com quem partilha os turnos, sublinha, no entanto, que a pensão atrai clientela sobretudo por ser “barata, limpa, segura e sossegada”.

Entre e durante as filmagens, a pensão mantém as portas abertas aos hóspedes que vão aparecendo. O interior do edifício acaba de beneficiar de uma série de obras de renovação, paredes pintadas, canalizações novas, algum do antigo chão em mosaico foi substituído por material de plástico que imita o soalho, intervenções necessárias para manter o edifício e tornar o espaço agradável para os clientes, explica Anna Yip. A administradora acrescenta que os quartos mantêm-se bastante simples, sem ar condicionado nem casa de banho privativa, devido à antiguidade do edifício e às restrições nas obras que podem ser feitas, razão para manter os preços relativamente baratos para os padrões de Macau.

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Liu Wei (FOTO: EDUARDO MARTINS)

A fazer ‘check-out’ está hoje o negociante de diamantes, Liu Wei, de Cantão. Exibindo um ar satisfeito com a surpresa que lhe fazem em ser alvo de interesse, conta ao PONTO FINAL que é funcionário da empresa de joalharia Luk Fook, que esta é a segunda vez que se acomoda na San Va, lugar que encontrou por mero acaso, quando procurava alojamento no centro a preços económicos. O perito em diamantes explica que, volta e meia, Macau é ponto de passagem nas suas viagens entre o continente, onde está o processamento e produção das jóias, Hong Kong, sede da empresa, e África do Sul, Bélgica ou Angola, onde se encontram os clientes.

A conversa ainda vai a meio, quando sai do quarto, na esquina com a recepção, o mexicano Fernando Gutierrez. Viaja pela Ásia com a amiga holandesa Anita Tang, ela de origem chinesa. Contam que encontraram a pensão na Internet. “Chegámos ontem, já muito tarde, é muito difícil encontrar um lugar barato, e este hotel é mencionado muitas vezes, esta é a zona de pensões mais económicas, por isso viemos parar aqui, é um lugar conveniente, limpo, central, não tão caro”, explica a holandesa. Daqui, os viajantes, seguirão para a Malásia.

No sábado seguinte, quando o PONTO FINAL regressa à pensão, encontra a proprietária, a senhora Irene Yip, com uns setenta e muitos anos, encostada ao balcão, em animada troca do que parece ser uma divertida conversa em cantonês com a “tia Sam”, aposentada, depois de quase 30 anos de serviço. “Ela ainda regressa de vez em quando para ajudar, principalmente no culto dos bons negócios para a nossa casa de hóspedes e pela boa saúde e segurança dos nossos funcionários”, explica Anna Yip.

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FOTO: EDUARDO MARTINS

Por detrás das portas de San Va

Em 2017, foi a vez do realizador português Ivo M. Ferreira voltar a instalar-se na pensão para, ao longo de várias semanas, rodar “Hotel Império”, que fez a sua estreia mundial a 12 de Outubro deste ano na segunda edição do Festival Internacional de Cinema de Pingyao, criado o ano passado pelo realizador chinês Jia Zhangke e o programador Marco Müller. A rodagem de “Hotel Império” foi a maior produção em termos de escala a acontecer no espaço da pensão, referiu Anna Yip. “Nunca tínhamos alugado o hotel inteiro para filmagens, geralmente alugamos alguns quartos apenas, foi a primeira vez que parámos de receber novos hóspedes no período das filmagens, antes continuávamos a acolher quem entrasse ou tivesse reservas feitas ‘online’”, disse a directora do espaço.

O filme, protagonizado pela actriz portuguesa Margarida Vila-Nova e pelo actor britânico e taiwanês Rhydian Vaughan, tem como pano de fundo um tema recorrente e muito presente na vida da cidade, que é a mudança acelerada do espaço, impulsionada pela especulação imobiliária e o crescimento económico.

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FOTO: EDUARDO MARTINS

Na longa-metragem, inteiramente filmada em Macau, a protagonista e o pai esforçam-se por manter o negócio a funcionar e evitar que o prédio seja derrubado e substituído por um arranha-céus, um enredo que quase se poderia confundir com a vida real. Mas não é o caso, uma vez que a Rua da Felicidade, incluindo o lote relativo à San Va, nos números 65 e 67, faz parte da lista de bens imóveis classificados, também chamados de edifícios patrimoniais, apesar de não fazer parte do “Centro Histórico de Macau”, classificado como Património Mundial, pela UNESCO, referiu ao PONTO FINAL o Instituto Cultural (IC). “Nos termos da Lei de Salvaguarda do Património Cultural, os bens imóveis classificados, incluindo os edifícios situados no lote relativo à pensão, são protegidos, sendo, portanto, proibida a sua demolição”, explica o IC na nota enviada ao PONTO FINAL. No caso de obras, também as condições de desenvolvimento do lote, incluindo o limite da altura de construção, entre outros, “devem respeitar os requisitos relevantes” descritos na planta de condições urbanísticas emitida pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes. Esta emissão da planta de condições urbanísticas, por sua vez, requer um parecer vinculativo prévio do IC, acrescenta a mesma nota explicativa.

Ivo M. Ferreira tem filmado nesta pensão desde 1999, por várias ocasiões, e novamente em 2017. San Va é também a memória do realizador de quando chegou a Macau, na década de 1990. Nessa altura, ficou alojado noutro hotel na vizinhança, o Tong Fong, na Travessa da Felicidade. Na época, “era tudo bastante misterioso, era como uma rua escura em que não sabemos o que está acontecer, aquelas portas todas e os corredores, San Va é também um lugar estranho, não se sabe o que há por detrás daquelas portas”, diz o realizador no documentário de Vanessa Pimentel e Yves Etienne Sonolet. A propósito do fascínio do cineasta em filmar em Macau, Ivo M. Ferreira acrescenta: “Gosto do burburinho, da energia da cidade sempre em transformação, mas também gosto de lugares que não mudam, gosto quando encontro lugares que conheço há muito tempo e continuam na mesma”.

 

 

 

 

 

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