“Existe o perigo de que a identidade macaense se evapore”

O investigador Roy Eric Xavier, da Universidade da Califórnia, acaba de publicar “The Macanese Chronicles A History of Luso-Asians in a Global Economy”. O livro pretende ser um contributo para o estudo da história dos macaenses, mas também um alerta para aquilo que o autor considera ser a necessidade de alterar o modo como as associações macaenses representam e defendem a comunidade. “A sua inacção deveria levantar questões sobre o seu próprio futuro enquanto representantes da comunidade macaense em todo o mundo”, defende.

Hélder Beja

Roy Eric Xavier faz parte da grande diáspora macaense no hemisfério norte do continente americano. Professor, investigador e director do Projecto de Estudos Portugueses e Macaenses na Universidade da Califórnia, Berkeley, tem-se dedicado ao estudo das comunidades luso-asiáticas e macaenses, bem como a questões relacionadas com a diversificação económica da actual RAEM. No livro “The Macanese Chronicles A History of Luso-Asians in a Global Economy”, agora publicado, colige dados e informação sobre as comunidades luso-asiáticas, recupera histórias e nomes esquecidos no tempo e não se escusa a uma análise crítica do modo como os macaenses se fazem representar junto das esferas de poder em Macau e Pequim. Em entrevista, Xavier questiona as actividades das associações macaenses em Macau, lamenta que a diáspora não seja potenciada e diz que “existem razões amplas para se ter uma nova estratégia para o século XXI, e não ficar amarrado às percepções dos séculos XIX e XX”. 

No seu livro escreve sobre a expansão portuguesa que “o aspecto mais controverso envolveu a disposição de alguns estudiosos para apresentar uma visão higienizada do colonialismo português que enfatizava a ‘aceitação benevolente’ dos grupos raciais encontrados na Índia, África e América do Sul, apesar das evidências históricas em contrário”. Isto de alguma forma ainda permanece? Por que acha que esse tipo de narrativa conseguiu oficializar-se e se cristalizou?

Esta foi a visão de [António de Oliveira] Salazar e outros colonialistas após a Segunda Guerra Mundial (França em relação a Argel, etc.). A razão pela qual esta opinião se tornou oficial em Portugal antes da revolução de 1974 foi porque era necessário manter os interesses comerciais em África e em Timor para apoiar uma economia fraca. Não sou um especialista nesta área, mas alguns académicos tentaram minimizar ou ignorar os custos humanos do sofrimento dos povos indígenas nessas regiões. 

Ao mesmo tempo, menciona “uma incapacidade de leitores e académicos em reconhecer o papel inicial dos portugueses como iniciadores de intercâmbios e relações com diversos povos”. Pode elaborar?

Isto foi o resultado de pontos de vista divergentes entre académicos, divergências sobre a interpretação de acontecimentos históricos e por terem pouca informação sobre os miscigenados descendentes de portugueses. Além disso, estudiosos portugueses, europeus e americanos praticamente ignoraram o impacto que o colonialismo teve sobre os grupos miscigenados e indígenas. Muito pouca pesquisa foi realizada sobre os luso-asiáticos em comparação com outros grupos de diásporas (os chineses, judeus, arménios, por exemplo) até este meu livro aparecer. É o primeiro passo no processo de descoberta de informações e dados que estão a ser recuperados sobre os macaenses.

Como resumiria o papel e a importância dos macaenses ao longo dos séculos? 

Os macaenses, o maior grupo de luso-asiáticos, foram os primeiros intermediários entre europeus e chineses e outros sul-asiáticos, que mantiveram laços comerciais quando as relações formais entre os países se romperam no final do século XVI e durante o século XVII. Não eram conhecidos como “macaenses”, claro, até se estabelecerem em Macau por volta de 1557. Mas foram eles que ficaram para trás após o regresso dos portugueses à Europa e a Goa depois 1640 e da tomada de Malaca por parte dos holandeses. Por necessidade, por estarem isolados de Goa, os descendentes luso-asiáticos que permaneceram em Macau continuaram a negociar com outras possessões portuguesas no sudeste asiático, desenvolvendo então as suas próprias actividades comerciais. Do século XVIII ao início do século XX, os macaenses foram fundamentais no desenvolvimento da indústria gráfica, essencial para a comunicação de informações e a realização de negócios em todo o mundo. Eles não apenas imprimiram e publicaram jornais e informação governamental, mas também desenvolveram embalagens, rótulos e publicidade, desenvolveram selos postais e notas para bancos internacionais; e, em geral, movimentaram os negócios do comércio da China através de veleiros mercantes e navios a vapor por meio das suas extensas redes de contactos, em parceria com muitos grandes bancos, governos e empresas.

Refere que os macaenses tinham e têm inclinação para os negócios e foca também o papel dos luso-asiáticos como intermediários coloniais. O facto de dominarem várias línguas foi um factor determinante?

Devido às suas origens raciais miscigenadas, os macaenses são tradicionalmente multilingues e multiculturais por via das suas raízes familiares em todo o Sudeste Asiático. Porque Macau era um porto aberto, muitos comerciantes e diferentes pessoas se estabeleceram na colónia, o que contribuiu para o papel de pessoas capazes de trabalhar com gente muito diferente. Também se comunicavam usando o dialecto híbrido que se tornou a “língua franca” da região, o “maquista”.

Foi decisivo para a sua história da comunidade que vários macaenses decidissem estabelecer-se em Hong Kong? 

A ida de macaenses para Hong Kong representa um ponto de inflexão importante. Se foi decisivo, não posso dizer. Eles tinham negócios activos antes das Guerras do Ópio – em Cantão, no Vietname, Tailândia e Indonésia. Mas Hong Kong tornou-se um lugar importante para eles expandirem as suas redes de contactos e aprenderem técnicas comerciais modernas, devido ao desenvolvimento do Império Colonial Britânico. Os macaenses em Hong Kong também encontraram oportunidades que não estavam disponíveis em Macau, onde os negócios diminuíram à medida que mais comerciantes se mudaram para Hong Kong. Enquanto centro comercial e financeiro, Hong Kong era o cenário ideal para lançar novos empreendimentos, porque muitos macaenses de primeira geração criaram uma comunidade acolhedora que podia apoiar esses esforços.

Fotografia: Eduardo Martins

No livro conta-se que, em Hong Kong, Eduardo Hyndman, macaense de apenas 15 anos, foi o mais jovem combatente a morrer durante a Segunda Guerra Mundial. Alberto Ozorio, Horacio Ozario e Eduardo Gosano tiveram papéis importantes. A história dos macaenses em Hong Kong durante a Segunda Guerra Mundial ainda está por contar?

Sim, há várias histórias que ainda não foram contadas, entre as quais a do Dr. Eduardo Gosano, que durante um curto período de tempo liderou o departamento de espionagem dos Aliados em Macau (BAAG). A segunda parte do meu livro conta várias histórias de indivíduos como José Pedro Braga, Jesuina Xavier, Leo d’Almada e Castro e Dr. Gosano, que sofreram diferentes formas de discriminação, levando a uma desconfiança geral em relação ao governo britânico em Hong Kong até à Segunda Guerra Mundial.

Relata vários factos que a maior parte das pessoas desconhecem, como Winston Churchill ter nomeado Leonardo d’Almada y Castro, o único macaense no Conselho Legislativo de Hong Kong, para um comité de planeamento do pós-guerra após a sua fuga para Londres em Junho de 1945. O modo como percebemos os diferentes papéis que os macaenses desempenharam na História está subestimado?

Sim, acho que esse é definitivamente o caso, principalmente porque muito pouco foi escrito sobre eles até agora. Essa foi uma das razões para escrever este livro: familiarizar os leitores com a história, os papéis e as contribuições dos luso-asiáticos e macaenses nas últimas centenas de anos.

Os macaenses sempre tiveram de lutar pelo seu estatuto social dentro de estruturas hierárquicas. Isto é correcto? Esta realidade alterou-se?

Estatuto e posição de classe são resquícios das sociedades coloniais, assim como o medo de ser associado a grupos “racialmente inferiores”. Este é especialmente o caso dos macaenses em Macau e Hong Kong até ao final da Segunda Guerra Mundial. É por isso que acredito que muitos macaenses em Macau quiseram ser identificados como “portugueses”, enquanto alguns macaenses em Hong Kong solicitaram a cidadania britânica e tentaram associar-se mais aos padrões britânicos. Infelizmente, eles não eram autorizados a entrar em clubes “apenas para britânicos”, foram relegados a posições intermediárias em bancos e outras empresas, e geralmente considerados “cidadãos de segunda classe”. Abordo isso no capítulo “Hong Kong e a introdução do distanciamento social”. Em alguns casos, isto mudou devido à sua influência em novas sociedades e países para os quais migraram após a Segunda Guerra Mundial. Entre a geração mais antiga de expatriados, ainda vejo casos em que a sua identificação preferida é a europeia. A minha recente investigação (ver “Epílogo” do livro), no entanto, mostra que entre as gerações mais jovens que nasceram fora de Macau, Hong Kong e Xangai está agora a estabelecer-se uma identificação [directa] com os luso-asiáticos e os macaenses.

Olhando para a comunidade macaense como um todo, qual a importância da religião católica para este grupo ao longo da história? 

Religião, laços familiares, língua partilhada, visão para os negócios e gastronomia são elementos importantes da cultura macaense. O sentimento de pertença à cultura de Macau é também uma parte importante de identificação. Todos estes são os fios comuns que unem todos os macaenses, onde quer que vivam.

Enquanto descendente de quinta geração de Macau, quão bem conhece a actual comunidade macaense residente em Macau e no estrangeiro, e que papel pensa que está reservado aos macaenses, particularmente em Macau?

O legado da minha família passa por Macau, Goa e Espanha. A importância destes laços tornou-se mais relevante quando comecei a estudar a história de Macau, depois visitando Macau e Hong Kong regularmente desde 2013. Durante essas visitas, discuti questões contemporâneas relacionadas com os macaenses, com políticos locais, funcionários da República Popular da China, líderes de associações, académicos, dirigentes universitários, chefes de governo, representantes de casinos, empresários e muitos indivíduos interessados na comunidade em Macau e no estrangeiro. Como já sublinhei a muita gente, acredito que os macaenses em Macau e no estrangeiro podem recuperar o seu papel tradicional de intermediários e daquilo a que chamo “embaixadores da mudança”. O enfoque em Macau para os macaenses, creio eu, tem sido míope e limitado apenas ao desenvolvimento das relações com os Países de Língua Portuguesa. Isso tem-se limitado a Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e Timor-Leste. Mas a minha pesquisa mostra que existem cerca de 1,6 milhões de luso-asiáticos e macaenses em outros países (a diáspora) que querem ajudar Macau a diversificar a sua economia para além do jogo. Também há pelo menos dois milhões de portugueses nos Estados Unidos que poderiam estar envolvidos. Como escrevi recentemente: “A oportunidade que a maioria (das organizações em Macau) negligencia é a relação directa com empresários e turistas culturais nas diásporas portuguesas e macaenses, nas comunidades de antigos cidadãos de Macau e descendentes de portugueses”.


Você escreve: “Apesar do aparato e recursos substanciais que poderiam ligar Macau a este futuro brilhante, os líderes macaenses em Macau têm lutado para definir o seu próprio legado histórico, enquanto tentam identificar o papel da comunidade na agenda geopolítica da China”. Como vê o modo como a China e a RAEM, enquanto parte da China, olham para a comunidade macaense?

Acredito que a percepção que a China tem da diáspora macaense é limitada pela percepção das associações macaenses em Macau. Ou seja, essas organizações temem que os seus números estejam a diminuir e a sua cultura esteja a evaporar-se. Eles claramente não têm uma verdadeira estratégia para o futuro. Embora algumas destas associações usem as suas relações contínuas com os macaenses internacionais para justificar grandes apoios da Fundação Macau para ajudar a “preservar a cultura”, não estão dispostas a usar essas relações para estabelecer contacto com jovens profissionais macaenses da diáspora interessados em estabelecer ligações por meio do turismo cultural e de parcerias de negócios. Apesar de eu documentar que não só existem mais macaenses e luso-asiáticos internacionais do que se estimava anteriormente, e documentar que existe um claro interesse em reconectar com Macau entre os membros da diáspora, as minhas frequentes tentativas de propor novos métodos de renovação cultural não foram consideradas pelo Conselho das Comunidades Macaenses e associações relevantes. A sua inacção duas décadas após o retorno à China, especialmente quando uma pandemia global clama por novas formas de fazer negócios, deveria levantar questões sobre o seu próprio futuro como representantes da comunidade macaense em todo o mundo. A publicação do meu livro é uma tentativa de mostrar que existem razões amplas para se ter uma nova estratégia para o século XXI, e não ficar amarrado às percepções dos séculos XIX e XX.

Existe um perigo real de que a identidade macaense se evapore? Refere que “os detalhes da história de Macau não são partilhados nem ensinados nas escolas locais”, com “muito poucas disciplinas que abordem história macaense, antropologia ou diversidade étnica nos colégios e  universidades locais”. Porque é que acha que isto sucede e qual é o seu impacto?

Sim, existe o perigo de que a identidade macaense se evapore, porque as associações que supostamente defendem a comunidade global não o fazem. Embora a informação e os dados históricos estejam disponíveis em arquivos do governo, as associações macaenses em Macau não solicitaram ao Instituto Cultural que os disponibilizasse a académicos locais e internacionais, ou pedisse a sua incorporação nos currículos escolares e universitários locais, ou os publicasse em revistas académicas ou livros – as minhas muitas visitas a Macau e discussões com representantes das entidades culturais e das associações confirmaram ser este o caso. Se essas associações estivessem realmente preocupadas em ‘preservar a cultura macaense’, trabalhariam colectivamente para garantir que a história da sua própria comunidade fosse preservada e digitalizada e, então, apoiariam o estudo dessa história. Sem esta preservação, as questões de identidade permanecem num limbo porque poucas pessoas dentro e fora de Macau podem ler sobre a sua história.

Faz algumas críticas aos Encontros das Comunidades Macaenses, mencionando questões de financiamento e também o facto de se dirigirem a um público envelhecido, com um toque nostálgico. O que pode ser melhorado? 

Como afirmei antes, uma melhor comunicação com os jovens macaenses internacionais no mundo dos negócios é um bom ponto de partida. Esta não é apenas uma questão comercial ou económica, mas também cultural, política e social. Deixei claro às associações que eu e os meus pares estamos dispostos a trabalhar com elas numa nova estratégia. Estamos à espera de uma resposta.

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