“Há muita qualidade na fotografia em Macau”

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

Gonçalo Lobo Pinheiro venceu o prémio do júri para melhor série, no concurso fotográfico “Macau 2020 – Tempo de introspecção”, em igualdade com Splendidsaber. O fotógrafo retratou a vida no lar de Nossa Senhora da Misericórdia. “Tentei dignificar as pessoas que ali estavam a passar por momentos difíceis”, diz, em entrevista ao PONTO FINAL. Gonçalo Lobo Pinheiro deixa ainda elogios à fotogenia de Macau e aos fotógrafos locais.

Texto: André Vinagre

Fotografia: Eduardo Martins

“Macau é totalmente fotogénica”, diz Gonçalo Lobo Pinheiro. O fotógrafo que ganhou o prémio do júri para melhor série no concurso “Macau 2020 – Tempo de introspecção” – em igualdade com Splendidsaber – refere ainda que “há muita qualidade na fotografia em Macau” e deixa elogios aos profissionais chineses e estrangeiros. “Há quem diga: ‘O nível de fotografia em Macau é uma bosta’. Se calhar não é”, considera. Lobo Pinheiro, que venceu a categoria com uma série de fotografias tiradas no lar de Nossa Senhora da Misericórdia durante a pandemia, quis dignificar utentes e cuidadores. “Tenho mesmo orgulho, gostei mesmo de estar aqui, não só das imagens, mas gostei do que vivi aqui”, afirma.

Como é que começou na fotografia? De onde surgiu o interesse?

Eu comecei a interessar-me pela fotografia já um pouco tarde, à volta dos 18 anos. O meu padrinho tinha uma Yashica e eu, de vez em quando, tirava umas fotos. O meu pai também tinha uma Olympus. Nessa altura, aos 18 ou 19 anos, havia um site na internet que era o Foto PT, que era um portal muito importante que tinha muita gente da lusofonia, alguns estrangeiros, tinha muitos profissionais; fazíamos tertúlias, encontros mensais. Conheci muita gente, desde amadores a profissionais, e fui aprendendo com essa gente. O gosto foi aumentando gradualmente. Aprendi muitas coisas já em idade adulta.

E a partir daí como é que foi desenvolvendo esse interesse?

Fui aprendendo com várias pessoas, conheci alguns fotojornalistas, depois também conheci fotógrafos de arquitectura, de produção, fui a alguns estúdios, fui aprendendo, fui lendo, fui vendo. A minha formação é em Jornalismo e ao mesmo tempo ia fazendo fotografia como carolice, e ia aprofundando situações, olhares, técnicas, sensibilidades. Estive quatro anos a estudar Engenharia Geológica e desisti, nessa altura eu já estava a gostar mais de fotografia, isto em 2001. Nessa altura ainda não estava a pensar que pudesse ser totalmente profissional, mas depois comecei a estudar Jornalismo, comecei a fazer fotografia. No início pedia acreditações para pequenas coisas, fui fazer um congresso do PS, fui fazer o congresso do CDS, fui fazer um ou outro jogo de futebol, mas tudo para acervo pessoal e nunca vendi, era para ganhar estaleca. Até que, em 2002, surgiu a possibilidade de fazer um estágio numa agência que já nem existe, a Intermeios. 

E a partir daí por onde foi passando?

Estive na Intermeios durante o estágio, depois, em 2004, estive na Superfoot Magazine. Na Superfoot fui conhecendo malta de A Bola, do Record, de O Jogo, do meio da fotografia desportiva, e eu falei com os editores de fotografia da altura e disse que estava a estudar Jornalismo, mas queria seguir o fotojornalismo. Em 2005 terminei o curso de Jornalismo na Autónoma, e surgiu uma oportunidade para trabalhar em A Bola, em Maio de 2005, quando o Benfica foi campeão. Mandaram-me para o Estádio da Luz, fui para o relvado. Foi uma sensação fixe, eu estava a começar e era um misto de várias coisas, se calhar algum provincianismo da minha parte, porque a minha família sempre leu o jornal A Bola, e depois estava a trabalhar para o jornal que era um jornal que tu lias e que achavas que era tudo maravilhoso. Era um misto de uma certa realização pessoal, profissional, a responsabilidade, eram várias coisas. O trabalho não correu mal, eu publiquei três fotos no jornal do dia a seguir, as coisas correram bem. Depois, fiquei na lista de colaboradores. Eu, ao mesmo tempo, estava a trabalhar na Portugal Telecom, que me dava uma certa estabilidade monetária. Por mais que eu quisesse fazer a minha carreira de jornalista e de fotógrafo de imprensa, eu não estava preparado mentalmente nem na minha vida familiar para poder sair da PT. Gradualmente, entre 2005 e 2007, fui tendo mais trabalho. Em 2007, o meu editor de fotografia propôs-me fazer a Volta a Portugal, 15 dias a andar de um lado para o outro no país, e eu aí pensei duas vezes, ouvi algumas pessoas que me pudessem orientar. Eu tentei mudar as minhas férias, foi-me negado; depois pedi uma licença sem vencimento de um mês ou dois, foi-me negado; e eu despedi-me. Eu podia ter-me arrependido, mas correu bem. Em Agosto fui fazer a Volta a Portugal e, a partir daí, nunca mais parei. Não sendo dos quadros de A Bola, a minha vida mudou. Eu tinha a agenda como se fosse um gajo dos quadros, todos os dias trabalhava, fartei-me de ir ao estrangeiro, fartei-me de fazer a Selecção Nacional, Benfica, Sporting, Porto, ‘whatever’. Também tinha estado no i, onde tinha um trabalho muito específico, eu era fotógrafo desportivo do i. Durante dois anos trabalhava para A Bola e trabalhava para o i. Em 2010 recebi o tal convite [para vir para Macau], pedi dois meses para pensar e decidi aceitar. Cheguei aqui em Setembro de 2010, está a fazer agora dez anos. Vim para o Hoje Macau, comecei a fazer coisas como jornalista e fui fazendo o meu percurso. Quando saí do Hoje Macau era editor, em 2014. Entre 2014 e 2018 estive só praticamente na Revista Macau, a fazer trabalhos e como coordenador de fotografia, e em 2018 o Paulo Rego convida-me para ser uma espécie de jornalista multimédia do projecto, mais vocacionado para o website.

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

Venceu o concurso de fotografia “Macau 2020 – Tempo de introspecção” com uma série no lar de Nossa Senhora da Misericórdia. Porque é que decidiu fotografar este lar de idosos?

Eu queria fazer um trabalho porreiro sobre a Covid-19 em Macau, mas estava a ver que, felizmente para nós, não havia casos em Macau e não estava a acontecer aquilo que nós víamos noutros países, as fotografias dos cuidados intensivos, dos caixões, etc. Felizmente, essas coisas não estavam a acontecer aqui. Esse tipo de fotografia era difícil de fazer, então comecei a engendrar outras ideias. Os Serviços de Saúde não ajudavam, eu fiz vários pedidos para ir às urgências tirar fotografias e para fazer um trabalho com a linha da frente, mas foi-me sempre tudo negado. Pensei: “Qual é um dos grupos de risco desta doença? São os velhinhos. Vamos fazer um trabalho com os idosos”. Numa primeira fase, o confinamento dos lares era total e aí não havia hipótese nenhuma. Eu mantive alguns contactos com a Santa Casa da Misericórdia e paralelamente com os lares da Caritas. Há muita coisa em jogo, não podes mostrar a cara das pessoas, não podes isto, não podes aquilo. Há várias restrições a serem respeitadas e tudo isto são desafios para a tua fotografia. Foi em Abril que eu vim [fazer as fotografias no lar]. Eu gostei da cor que as fotos estavam a passar e, quando estava editar, pensei: “Epá, que cores tão fixes, que tons tão fixes”. Eu estava a gostar daquilo, a sério. Deu-me gozo especial.

Quando entrou no lar, o que é que encontrou?

À entrada há um átrio grande, parece um palácio. Eu quis ver como é que os velhinhos estão a viver estes tempos incertos e quero perceber, acima de tudo, como é que os cuidadores estão a cuidar. Tirei centenas e centenas de fotos e acabei por fazer uma série que, dependendo dos moldes como eu quero contar a história, pode ter 10 ou 12 fotografias. 

Apesar das restrições de privacidade, o elemento humano está muito presente…

Pessoas porquê? Porque é a cena do jornalismo, dar voz às pessoas, dar rosto às pessoas, retratar pessoas. Eu tentei dignificar as pessoas que ali estavam a passar por momentos difíceis. O meu grande desafio era retratar o trabalho dos cuidadores e fazer isto com uma certa dignidade. Tenho mesmo orgulho, gostei mesmo de estar aqui, não só das imagens, mas gostei do que vivi aqui.

A pandemia alterou as suas rotinas e o teu trabalho enquanto fotógrafo?

Alterou principalmente em Fevereiro, quando ficámos quase todos fechados. Eu tenho de pôr muitas coisas na balança. Tenho três filhos. Às vezes eu penso como fotojornalista, quero fazer isto e aquilo, mas tenho de pensar que não estou sozinho.

É difícil traçar essa linha?

Eu sou muito impulsivo. No ano passado, tive de me ausentar de Macau durante três meses, numa altura crucial de Hong Kong. Eu, mesmo estando longe – estava no Brasil – pensava: “Gostava tanto de estar agora em Hong Kong”. Mas eu estava com a minha família e tinha questões que tinha de tratar com a minha família, mas, ao mesmo tempo, a minha alma de jornalista falava: “Está a acontecer história em Hong Kong, eu moro em Macau e estou aqui e não posso fazer nada”. Há um limite que tens de gerir, é a vida.

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

Apesar da gravidade da pandemia, esta é uma altura fotogénica?

As máscaras são fotogénicas, as cores, as coisas, a forma como as pessoas metem a máscara. Eu gosto muito de fazer fotografia de rua e à hora de almoço levo a minha máquina comigo – aliás, anda sempre comigo – e tiro umas fotos e gosto dessa dinâmica do ‘street photography’, e agora gosto mais porque acho piada. Em termos de composição fotográfica, é engraçado. 

Como é que caracterizaria a sua fotografia? Já pensou nisso?

Não [risos]. 

Não há uma linha que esteja a seguir, propositadamente ou não?

Acima de tudo, a minha linha é uma linha do humano. O humano tem de estar, eu tento fazer as coisas com uma índole social. Eu já bebi tanta coisa de fotografia, dos meus ídolos, dos livros que eu vejo, dos fotógrafos fantásticos que existem. Eu estou sempre a beber fotografia. E a fotografia dos meus amigos, dos meus colegas, do Eduardo [Martins], da malta que está em Portugal e que eu conheço, eu ando sempre a ver o que estas pessoas fazem e a beber e a aprender com essas pessoas. É fácil tu seres bué influenciado. Obviamente tens sempre uma linha, eu acho que o fio condutor não é a técnica, é a tua sensibilidade. O teu olhar, a forma como tu olhas para uma coisa. A sensibilidade de cada um de nós é que diferencia o tipo de fotografia que se tira. 

O que Jay Yeung, vencedor do prémio para melhor foto individual do público, disse foi que Macau era muito interessante para fotografar porque, como já tudo foi fotografado, permite mostrar o olhar de cada fotógrafo perante os mesmos cenários. Concorda?

Concordo, não é nenhum disparate. Havia um fotógrafo que viveu aqui 16 ou 17 anos, que era o António Falcão. Ele dizia-me: “Chegaste aqui agora, tens sangue novo, tu é que vais fazer aqui uma revolução”. Porque ele dizia que quem está aqui há mais tempo já tem o olhar um bocado viciado. Eu não concordo totalmente com isso, eu percebo o que ele quer dizer, se calhar não há a mesma sensibilidade de reparar numa coisa de um gajo que chega aqui de repente. Ao início há um deslumbramento que te abre a pestana e que te faz estar mais atento. Macau é totalmente fotogénica. Depois, há várias luzes aqui, ultimamente há céus lindíssimos aqui. Percebo o António Falcão, mas também concordo com o que o Jay Yeung disse.

Em que nível está a fotografia em Macau?

Continua a haver um ‘gap’ muito grande entre os estrangeiros e os chineses. Nós, estrangeiros, não conhecemos verdadeiramente o trabalho dos chineses. Aquela foto que venceu o prémio do júri individual, do Roy Choi, essa foto é fantástica. Eu nem conhecia o Roy Choi de lado nenhum, mas entretanto já somos amigos no Instagram, já estivemos a falar um com o outro a trocar opiniões e ideias. Aquela foto é fantástica, até votei online. Acho que é uma coisa lindíssima, um momento ternurento. Acho que há esse ‘handicap’, mas acho que melhorou. A vinda de vários fotógrafos nos últimos anos para o lado estrangeiro, o Eduardo Martins, o Eduardo Leal, que são nomes com trabalho com qualidade, tudo isso veio acrescentar grande valor. A Sofia Mota também tem coisas muito interessantes. Do lado inglês há poucas coisas, há o David Hartung, que é um grande fotógrafo. Deve haver bastantes bons fotógrafos do lado chinês que nós não conhecemos. Depois há quem diga: “O nível de fotografia em Macau é uma bosta”. Se calhar não é. Eu acho, sinceramente, que há muita qualidade na fotografia em Macau, seja do lado chinês, seja do lado estrangeiro.

 

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