Escutar um homem sentado a uivar ao frio. O caminho de Rui Rasquinho para a abstracção 

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

Entre a ilustração que resulta da apropriação do texto literário e o desenho que se estende em folhas de caderno, dilui-se o elemento figurativo, num modo de concretização que pende, cada vez mais, para a abstracção. A mostra “Who heeds a man who sits and wails out in the cold?”, de Rui Rasquinho, inaugura-se hoje, às 18h30, no Taipa Village Cultural Association. Uma proposta que precede o exercício que atordoa e questiona os limites do desenho, que o artista apresentará, em Julho, na Casa Garden.   

Texto: Sílvia Gonçalves

Fotografia: Eduardo Martins

Na representação da figura humana que caminha no vazio, a ligação a um poema que narra a viagem, o trajecto, a percepção de abandono, que o artista encontrou na construção poética de Li He. Traço curvilíneo, fluído, monocromático, conferido pela tinta-da-china, a aproximar a ilustração do texto de que é extensão mas também interpretação livre. Na mostra que hoje se inaugura no Taipa Village Cultural Association – onde permanece até 3 de Julho –, Rui Rasquinho apresenta um corpo de trabalho que traduz sete anos de ilustração de textos da literatura clássica chinesa, traduzidos do inglês por Rui Cascais e publicados, semanalmente, no jornal Hoje Macau. A par do conjunto ilustrativo, o artista inclui, na mesma mostra, um conjunto de desenhos em folhas desdobráveis de cadernos onde o elemento figurativo se dilui na abstracção. Processo de estudo contínuo, “quase obsessivo”, que reflecte, na prática do desenho, o movimento pendular entre figuração e depuração, que encontra expressão no abstracto.

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

“Há vários processos, não há um processo-matriz. É mais fácil ilustrar um texto de poesia do que um texto sobre ética, moral ou filosófico. A poesia cria imagens”, descreve Rui Rasquinho, sobre o processo de ilustração do texto que, em cada semana, lhe chegava às mãos. “Havia uma preocupação, às vezes, de não traduzir literalmente uma imagem reconhecível, para não ser meramente ilustrativo, para não ser uma cópia da imagem já fabricada pela poesia. Havia vários métodos de o fazer, às vezes de uma forma literal e figurativa, outras vezes de uma forma abstracta”. 

No trabalho de ilustração, dá-se no criador o exercício de reinterpretação do texto, de apropriação da narrativa que poderá afastar-se da intenção seminal do autor. “Sim, completamente fora, às vezes; é uma leitura bastante livre”. Rui Rasquinho fala de um pré-texto de que o desenhador não se pode, contudo, afastar. “Os desenhos existem porque existe um pré-texto, eles estão dependentes disso. Podem ter uma interpretação formal ou outra mais livre, mas estão acoplados ao texto, e jamais teriam um texto novo, o título que têm é o do texto”. 

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

Na escolha da tinta-da-china, encontrou o artista uma aproximação à dimensão clássica da literatura – que procura ilustrar – e da pintura chinesas. “Começou exactamente por aí, a ideia da tinta-da-china. Mas não uso só essa tinta. A maior parte da vezes, sim, mas também tem técnicas mistas, tem carvão, tem outro tipo de tinta. Mas existe uma predominância da tinta-da-china, obviamente. No início foi para fazer uma ligação directa ao tema, e pelo gozo de experimentar novas expressões não-clássicas com a tinta chinesa”. O que é mais sedutor no uso da tinta-da-china, a fluidez que ela permite, que é difícil de controlar? “Claro, a fluidez e os vários tons, desde o cinzento ao negro”. 

“SEMPRE A HESITAR ENTRE O FIGURATIVO E O ABSTRACTO, MAS CADA VEZ MAIS ABSTRACTO”

No lado oposto às ilustrações, no branco total da pequena galeria do Taipa Village, apresenta o artista desenhos que percorrem quatro cadernos desdobrados, exibidos na horizontal. “Estes livros vieram um bocadinho da experiência, do contacto que eu tive com esta estética chinesa das ilustrações. Não foi uma escolha programática, peguei nisto porque os textos eram clássicos chineses e decidi brincar com as referências da pintura clássica chinesa. Depois tornou-se numa coisa mais séria. Isto [aponta para os cadernos] já é outra coisa, já é desenho, evoluiu para isto, para expressões mais abstractas, sempre a hesitar entre o figurativo e o abstracto, mas cada vez mais abstracto”.

Se os cadernos acompanham o criador, também é certo que o gesto criativo se tornou exercício contínuo para o desenhador. “Sim, isto faz parte de um processo de estudos constante, quase obsessivo, diria eu, de desenhar e andar à volta dessa contradição entre figuração e abstracto. Isto demonstra um processo. Há quatro, cinco anos que desenvolvo este trabalho. De uma forma obsessiva, já tenho muitos, não só destes cadernos, que eles chamam cadernos de harmónica, livros de harmónica chineses, mas também em blocos de estudo”. 

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

Mas funcionam os estudos como esboços para uma concretização posterior? “Não, os estudos são coisa final. Esta prática [aponta para os desenhos] veio desta [as ilustrações], mas não tem rigorosamente nada a ver uma com a outra. Porque é que eles estão aqui nesta exposição, para fazer essa ligação entre esta experiência de ilustração que passou para uma prática de desenho. Mas, formalmente, não tem nada a ver, houve só um contágio”.

Se no trabalho de ilustração os elementos figurativos atravessam cada construção plástica, os desenhos que se estendem nos cadernos são declaradamente abstractos, numa profusão de formas, manchas, que evidenciam um modo de conceptualização. “Existe um processo para tentar lá chegar, não interessa lá chegar ou não. Existe um processo para, e o que interessa é o processo. Existe uma intenção de abstractização da coisa, sim. Eu diria que existe sempre uma hesitação entre o figurativo e o abstracto, recuos e avanços. Não será uma abstracção total, será talvez um estudo, um processo para, tendo isso em mente”. 

Um processo não isento de transgressão, no modo como o artista rejeita o modo convencional de apresentação, no contexto expositivo. “Eu sou muito contra a imagem enquanto ícone, a coisa emoldurada na parede. Apetece-me transgredir isso. E isto [o caderno] não é uma coisa que esteja sempre exposta, podes dobrar, guardar, ninguém sabe que existe. O desenho não tem que estar sempre exposto, acho que a exposição mata o desenho”.  

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

A um corpo expositivo que reúne ilustração e desenho, colou o artista um título que resgata o verso de um poema, traduzido para inglês, de Li He: “Who heeds a man who sits and wails out in the cold?”. Que Rui Rasquinho traduz como: “Quem escutaria um homem sentado a uivar ao frio?”. “É uma estrofe de um poema do Li He. E eu, de uma forma mais ou menos nebulosa, achei que era essa parte do poema que podia traduzir a sensação geral de quem vê estas ilustrações. Há aqui várias imagens que podem sugerir isso. Não existe uma relação directa, um significado exacto do título, é uma atmosfera, uma ideia, e vem do Li He”.

EXPLORAR OS LIMITES DO DESENHO

Nesta altura, o artista dá conta da interrogação que paira, ainda, em torno do próximo trabalho a apresentar, já em Julho, na Fundação Oriente. “Já estou a trabalhar para isso. É uma evolução disto [dos desenhos], em formatos maiores. Mas não tenho a certeza, ainda estou a decidir. Vai ser este tipo de desenho mas se calhar noutros formatos. É uma coisa nova, é sobre os limites do desenho”. Do desenho como possibilidade? “Como possibilidade. Ainda não sei, estou a tentar descobrir agora, a tentar perceber o que vai acontecer”. 

FOTOGRAFIA: Eduardo Martins

Se a próxima exposição pressupõe um caminho de exploração do próprio modo de conceber o desenho, outras linguagens e suportes deverão envolver a concretização plástica. “Mas tudo isso na forma de como repensar o desenho. Poderá ser carvão, poderá ser tinta, pode ser som, pode ser vídeo”. Há sobretudo entusiasmo, nesta fase, ou é um exercício penoso? “É a minha razão de viver, neste momento. Estou super entusiasmado, em pânico total e em excitação total (risos). Em pânico de falhar, aquilo pode falhar tudo”. O que é isso de falhar, na construção artística? “Formalmente, as pessoas podem não compreender, e, conceptualmente, pode ser uma fraude, como há muitas. Eu não gostava que fosse”.

Para onde caminha Rui Rasquinho, enquanto desenhador? “Caminho para tentar descobrir os limites do desenho. Sair do desenho enquanto formato ‘standard’. Tens um papel e uma caneta, o desenho pode ser mais do que isso e estou a explorar isso. É o que vai ser a próxima exposição, vai ser sobre isso”.  

 

 

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