Tracy Choi sobre “Sisterhood”: “Não sei se o público vai gostar deste tipo de cinema, é um filme muito pessoal”

“Sisterhood”, da realizadora local Tracy Choi, é o filme que representa Macau na secção em competição no Festival Internacional de Cinema do território. Esta é a primeira longa-metragem da cineasta, uma co-produção com Hong Kong, que aborda a relação cúmplice entre duas mulheres, vivida em Macau nos anos 1990s. Gigi Leung, actriz e intérprete de cantopop de Hong Kong, veste a pele da personagem que regressa 15 anos depois para se confrontar com o passado, numa cidade transfigurada por um crescimento desenfreado.

sisterhood_01

Cláudia Aranda

O primeiro esboço da história contada em “Sisterhood” foi traçado por Tracy Choi quando estudava cinema em Taiwan, na Universidade Shih Hsin. Quando mais tarde vai para Hong Kong fazer o mestrado em produção de cinema, a jovem de 28 anos, nascida em Macau, volta a pegar na história e desenvolve-a: faz pesquisa sobre a profissão das mulheres que trabalhavam em estabelecimentos de saunas e massagens nos anos 1990s, em Macau. Em 2013, o Instituto Cultural lança o “Programa de Apoio à Produção Cinematográfica de Longas-Metragens”, e Tracy Choi usa aquela ideia para se candidatar ao subsídio de 1,5 milhões de patacas atribuído pelo organismo presidido por Guilherme Ung Vai Meng. É, no entanto, a argumentista para cinema de Hong Kong, Au Kin Yee, que, na opinião de Tracy, dá os retorques de génio à versão final do argumento do filme agora em estreia no 1º Festival Internacional de Cinema de Macau e Cerimónia de Prémios (IFFAM). A escritora conhece bem a linguagem do cinema, empresta ao texto a dinâmica necessária e torna a narrativa verosímil. Para a estreia mundial de “Sisterhood”, a 12 de Dezembro, vai haver passadeira vermelha, algo que a cineasta estreante no campo das longa-metragens nunca imaginou, ela que no início apenas queria fazer um pequeno filme de autor.

Tracy Choi é uma das realizadoras que tem vindo a crescer e a consolidar caminho no panorama cinematográfico local desde que em 2012, a sua curta-metragem documental I’m here/Aqui Estou, venceu o prémio do júri da secção Macau Indies do Festival Internacional de Cinema e Vídeo de Macau. “Sisterhood” é a primeira longa-metragem de Tracy Choi e baseia-se na sua experiência de crescer em Macau e testemunhar as rápidas mudanças da cidade na última década. Entre a sua obra, contam-se ainda as curtas: “A Friend of Mine” (2013), “Moonbow” (2010), “A Little Naive” (2013) e o documentário “Farming on the Wasteland” (2014).

 

–  Como é que começa a colaboração com a argumentista Au Kin Yee?

TC – Um dos meus produtores foi também meu professor durante o mestrado: Ding Yu Shan. Levou-me com ele a uma série de produtoras de Hong Kong para vender a proposta. Foi nesse processo que conheci Au Kin Yee. Ela começou a fazer pesquisa comigo. Veio a Macau para conhecer massagistas de outros tempos. A minha mãe trabalha numa companhia seguradora e muitas dessas mulheres eram suas clientes. Na verdade, há uma massagista que conheço desde pequena e a história surge com ela. Quisemos conhecer o ambiente de trabalho, a relação com os clientes, o tipo de ligação que existia entre elas. Pedi-lhes para contarem histórias. À medida que falávamos com elas íamos também “capturando” as suas personalidades, características, os tiques, para depois introduzirmos no guião.

– Retrata essas histórias no filme?

TC –  Alguns episódios são baseados em factos reais. Quando estávamos a escrever o guião a preocupação foi focarmo-nos nas personagens, na relação entre elas, mais do que na sua profissão. O que elas faziam passou para segundo plano. Quisemos trabalhar os sentimentos da personagem principal, quando ela regressa a Macau, 15 anos depois.

– A profissão de massagista está muito conotada com a prostituição, isso também está retratado ou não é esse, o tema do filme?

TC – Esse não é o aspecto principal, mas no meu filme eu mostro um pouco do que era o trabalho das massagistas nas saunas.

– Disse que o filme centra-se na relação entre as duas mulheres…

TC – A personagem principal, Seiya, ela arranja trabalho nesta profissão, passa pela entrevista, aprende com as colegas, e nesse processo, fica amiga de Kay, criam uma relação muito próxima, vão viver juntas. Entretanto Kay engravida e as duas começam a criar o bebé. Perto de 1999 [o ano da transferência de soberania de Macau para a República Popular da China], a economia estava muito em baixo, não havia turistas. A carreira de massagista dependia muito dos turistas de Hong Kong. Mas, nessa altura, havia muita insegurança [conflitos entre seitas e grupos criminosos rivais com perseguições e mortes na rua]. E elas passam dificuldades, zangam-se, até que a personagem principal decide casar com um homem e ir para Taiwan. O filme começa com o regresso de Seiya a Macau, 15 anos depois. Elas nunca mais falaram uma com a outra, mas um dia Seiya sabe que Kay desapareceu, regressa a Macau e apercebe-se que a cidade mudou muito.

– Por quê retratar estes dois períodos, o passado e o presente?

TC – É também porque eu própria estive longe de Macau durante alguns anos quando fui para a universidade. Também tenho esse sentimento quando volto que muitas coisas mudaram. Queria introduzir este sentimento na história. Porque aquele personagem esteve fora 15 anos, houve mudanças enormes e ela já não reconhece o lugar. No filme ela regressa a alguns lugares que já não existem.

sisterhood_04

– Filmar lugares que já não existem deve ter sido complicado.

TC – Para filmar foi difícil, não tínhamos orçamento para reconstruir lugares, esse foi o nosso maior desafio. No filme recriámos um cenário, perto do Mercado Vermelho, conhecido por “Tou Fa Gong”, uma espécie de “food-court”, rodeado de lojas pronto-a-comer. Nos anos 1990s havia muita gente a frequentar esse lugar e as massagistas iam muito lá. O lugar ainda lá está, mas fechado e vazio, tentámos revitalizar, redecorar, recriar a atmosfera. Também foi difícil encontrar as saunas típicas dessa altura. Agora é tudo muito moderno. Para as cenas interiores nas saunas filmámos em Hong Kong.

– Que outros obstáculos encontrou?

TC – Em Macau também foi difícil encontrar um elenco completo de actores. Temos agora uma produtora de Hong Kong a investir no filme, eles ajudaram-nos a fazer o “casting”, também por causa dos contactos que a produtora tinha pudemos enviar o argumento para a actriz principal do filme. A Gigi Leung leu o argumento, adorou o personagem e juntou-se ao projecto. Na altura, isto deixou-me um pouco nervosa. Eu, uma realizadora sem experiência, a lidar com uma estrela de Hong Kong. Mas, na verdade, ela é muito simpática, estava sempre a querer sentar-se comigo para falarmos dos detalhes do personagem, perguntava-me como eu queria que ela fizesse. É uma actriz muito bem preparada.

– Donde veio o financiamento que faltava?

TC – O meu produtor, e professor, levou-me com ele e fomos bater às portas de produtoras em Hong Kong. Apesar de já ter 1,5 milhões assegurados pelo Governo, ninguém se mostrou interessado. No início eu queria fazer uma produção local, um projecto pequeno, independente. Mas, havendo uma produtora, quando eles investem um milhão eles querem ver esse dinheiro de volta. Foi difícil convencê-los a investirem em nós. Podíamos ter tentado ir pedir dinheiro aos casinos, aqui em Macau. Mas o meu professor e produtor disse que era melhor tentarmos as produtoras primeiro, ele achou que era melhor para mim, porque uma produtora faz também a distribuição do filme. Nós batemos à porta de quase todas as produtoras em Hong Kong. Mas como sou nova no circuito, com pouca experiência foi difícil convencê-los de que poderia levar o projecto para a frente. Mas, felizmente encontrámos a companhia One Cool Film Production, que confiou em nós. Tivemos muita sorte.

– Como convenceram uma companhia de Hong Kong a financiar o filme?

TC – Não sei, tivemos uma reunião com o dono e ele disse, “provavelmente vou perder dinheiro com este filme”. Porque é difícil recuperar o investimento só com as vendas de bilheteira. O próprio dono da produtora disse que com um tema destes, tão feminino, tão cinema independente, seria difícil recuperar o investimento. Quando o ouvi a dizer isto pensei que tínhamos falhado novamente. Mas, no dia seguinte ele telefonou ao produtor e disse, “ok, vamos dar uma oportunidade à realizadora estreante”. Eles investiram 3 ou 4 milhões, no total juntámos à volta de 5 ou 6 milhões.

– Que mais os convenceu a confiarem na Tracy Choi?

TC – Penso que o argumento é bastante convincente. Está muito próximo da minha experiência e de como sinto Macau. E também Au Kin Yee. Ela é uma argumentista profissional, também trouxe outra dinâmica à narrativa e deu forma à história. Acho que tudo combinado resultou bem.

sisterhood_03

– O filme é sobre amizade? É uma história de amor?

TC – É uma relação que vai além da amizade, mas como não queria estar a rotular o filme…claro que elas se amam, como família, como amigas, ou mais do que amigas. Mas, esse também não é o tópico. Porque nos anos 1990 nem se pensava nisso. Duas raparigas viverem juntas como família, a criarem um bebé, acho que não se pensava que essa pudesse ser uma forma de vida. Talvez tenham ido em direcções diferentes por causa disso. Na minha pesquisa, falando com estas mulheres, percebi que havia muita auto-censura e auto-repressão [em relação à homossexualidade], deparei-me com um caso em que ela própria recusa aceitar essa opção, de poder apaixonar-se por uma mulher. É um pouco esse sentimento que ponho na história. Quero que a personagem principal se aceite a si própria e perceba que o sentimento que ela nutria era amor.

– Como é que o seu filme entra no festival?

TC – Quando estávamos quase a terminar as filmagens, a produtora começou a divulgar os cartazes e o “teaser” para o filme. Marco Müller contactou a produtora e quis saber quando é que poderia ver o filme, penso que foi em Julho ou Agosto, nós ainda não tínhamos terminado a montagem. Tivemos sorte porque ele gostou do filme e disse que seria interessante incluí-lo na competição.

– Quanto tempo demoraram as filmagens?

TC – Filmámos durante 24 dias, entre Fevereiro e Março, quatro em Hong Kong, 18 em Macau e dois dias em Taiwan, porque a personagem principal parte de Taiwan.

– Era necessário ir filmar a Taiwan?

TC – A primeira razão é porque estudei lá. Também acho que em Taiwan as pessoas estão mais próximas umas das outras, o ritmo em Taiwan é mais lento, penso que é como Macau costumava ser.

 – Que impacto julga que esta participação na competição pode ter na sua carreira? Vai haver muita gente a ver, muitos jornalistas internacionais, muita gente a falar do filme, está preparada para isso?

TC – Não sei ainda. Desde que terminámos o filme… porque é a primeira vez que estou a realizar uma longa-metragem, acho que ainda há muitas coisas que posso melhorar, ainda estou a pensar… não sei se o público vai gostar deste tipo de cinema e este tipo de história. Para mim é muito pessoal, não sei como dizer. Não é muito comercial. Mas, estou entusiasmada por estrear aqui em Macau, estou curiosa por ver como o público aqui vai reagir, se gostam do filme.

– Os seus filmes geralmente abordam temas complexos, o “bullying” na escola, o processo de criação de três escritoras de Macau, a homossexualidade…

TC – O filme “I’m here” e “A friend of Mine” são filmes muito pessoais. “I’m here” aborda as relações homossexuais entre mulheres em Macau. É, também, sobre mim, a minha família, os meus amigos. É muito pessoal. Em “A Friend of Mine”, que aborda o tema do bullying, o personagem principal não é quem faz bullying nem é a vítima, é quem fica à parte, a ver, sem fazer nada. Penso que a maior parte das pessoas está nesta situação –  não são vítimas nem agressores – mas testemunham casos e não reagem. Isso é algo que tem que mudar. Acho que tem a ver com a minha experiência enquanto criança, lembro-me de ver alguém a ser vítima de agressão por parte dos colegas e de eu não tentar ajudar ou fazer nada.

– Qual é o próximo projecto?

TC – Estou a tentar escrever um argumento novo, que vai numa direcção diferente. É também uma história de Macau, fala também sobre mulheres. Mas, desta vez, quero que se passe na actualidade, quero falar dos dias de hoje, quais os desafios que as mulheres enfrentam no trabalho. Tenho muitas amigas que trabalham nos casinos, muitas delas tiveram que mudar totalmente a sua vida por causa do trabalho por turnos, portanto aquele lugar pode mudar-te também.

– As mulheres vão ser sempre o seu tópico?

TC – Sim.

– Porquê?

TC – Não sei. A questão do género sempre me atraiu. Quando escolho um filme, se o tema é género atrai-me logo. Talvez porque sou mulher.

– Interessa-lhe o tema do género do ponto de vista das mulheres?

TC – Sim, sim.

– Já constatou que estes temas podem ser difíceis para conseguir financiamento. Isso não a preocupa?

TC – Espero no início dos projectos conseguir centrar-me naquilo que quero dizer e fazer no filme. Mas, sim, na fase de angariar o financiamento vou ficar preocupada se este tipo de temas não atrair investimento. Mas, no início, apenas quero poder contar uma história.

Leave a Reply