Um padre na dimensão da alegria

Lancelote1O padre Lancelote Rodrigues morreu ontem aos 89 anos. Persistiu numa vida activa de serviço social e na alegria da convivialidade e do trato com os outros, recordam amigosentre as muitas pessoas com quem lidou e cativou.

Maria Caetano

Gostaria de ser recordado como um “bonacheirão”, “Sir Lancelote da Garrafa Redonda”, brincou um dia em declarações ao jornal Correio da Manhã. Tinha 85 anos. Viveu mais quatro, até ontem, Lancelote Rodrigues, padre dedicado à missão de apoio aos refugiados e um figura carismática, voz de soprano, amante do uísque, assumidamente apreciador de mulheres bonitas e alguém recordado por uma amabilidade fácil que servia a causa de apoiar quem precisava. Queria uma Igreja activa e, publicamente, contestava o caminho seguido pela diocese local, mantinha-se fora. Mas sempre estava perto das pessoas e das organizações do serviço social.

O padre Lancelote Rodrigues morreu ontem, aos 89 anos de idade, após um período prolongado de doença que o manteve primeiro internado no Centro Hospitalar Conde de São Januário, e depois no Hospital Kiang Wu, onde recebeu amigos até pouco antes de falecer.

A diocese de Macau reservou para o dia de hoje declarações sobre a morte do sacerdote. O Governo de Macau manifestou já ontem “grande pesar”, numa nota de condolências subscrita pelo Chefe do Executivo, Chui Sai On.

“O padre Lancelote Rodrigues destacou-se pelos serviços prestados aos refugiados, tendo dedicado vários anos ao serviço dos mais carenciados. Era uma pessoa muito ligada à comunidade macaense, foi distinguido com as mais altas condecorações e constitui uma referencia altruística incontornável e inspiradora de todos quantos em Macau, e pelo mundo fora, puderam com ele conviver”, descreveu o líder do Governo, que reconheceu também Lancelote Rodrigues como  Doutor Honoris Causa pela Universidade de Macau em Ciências Humanas.

Foi um dos muitos actos de reconhecimento, local e internacional, do trabalho pastoral e social  do sacerdote, em múltiplas geografias, recebendo desde a Ordem do Império Britânico (1992) à condecoração como Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, concedida pela República Portuguesa em 1995.

“Era uma pessoa muito sociável, muito bem-disposta, muito alegre. Sabia cativar os outros”. Leonor Seabra, autora de uma biografia do religioso publicada pelo Instituto Internacional de Macau, destaca as qualidades humanas que permitiram ao padre malaquenho conquistar amizades, relações internacionais e apoio para as causas sociais em que trabalhava.

“A vontade de ser padre”

“Tinha muitos contactos graças ao seu feitio, tão amável, à forma tão amigável, simpática de acolher os outros. Fossem quem fossem, independentemente da posição social. Não ligava a isso”, descreve a historiadora.

A investigadora da Universidade de Macau destaca como Lancelote Rodrigues “teve sempre grande facilidade de contacto com os cônsules ou os bispos dinamarqueses, holandeses, do norte da Europa e dos Estados Unidos”. Em virtude  destes relacionamentos “teve sempre grandes apoios financeiros também para as suas obras, o que era importante noutros tempos”. “Macau não tinha esta riqueza que tem hoje”, recorda Seabra.

A missão social de Lancelote Miguel Rodrigues, nascido em Malaca, na Malásia, em 21 de Dezembro de 1923, começou em 1949, ano da sua ordenação como padre e do encontro com a vocação enquanto capelão dos refugiados portugueses de Xangai, instalados durante a II Guerra Mundial no Canídromo, na zona norte da cidade.

Foram eles que o “alentaram”, disse em entrevista a este jornal há três anos. “Foi lá que me apercebi das desgraças, das tristezas que por aí havia. Eles tinham deixado tudo em Xangai e vieram para aqui, viver num canil. Esta experiência atiçou-me a vontade de ser padre, de fazer algum bem”, contou.

“Ver a vida dos refugiados, depois de terem estado muitíssimo bem (os nossos centros não eram paraíso nenhum). Havia ainda religiosidade dos xangainenses. As madres chineses também estavam lá, com os rapazes abandonados, pobres. Tudo isto conjugado tinha de criar uma luz qualquer. E assim foi”, recordava.

Lancelote Rodrigues fez a instrução primária em Malaca, em inglês. Chegou a Macau com 12 anos, em Novembro de 1935, deixando uma família grande e “muito religiosa” para trás: “Se a família é boa, se faz a pessoa rezar, está tudo bem”. Sempre teve fé, afirmava.

No Seminário Diocesano de São José aprendeu a Teologia e a Filosofia até ao início da idade adulta. Aprendeu também a língua portuguesa, que falava fluentemente a par com o chinês, o malaio, o inglês e ainda o cristang de Malaca. Antes de receber a missão junto de serviço aos refugiados de Xangai, que desempenhou até 1965, chegou a pensar casar. Desistiu para amar mais que uma mulher, contou.

Durante décadas, o padre organizou a emigração e acolhimento internacional de milhares de refugiados que chegavam a Macau – às quais as  autoridades de então não permitiam a permanência. Mais tarde, “também apoiou refugiados da Indochina, os refugiados do Vietname, de Timor-Leste”. “Fez com que Macau fosse o sítio que lhes garantiu cuidados”, conta Paul Pun, o secretário-geral da caritas, a quem já reformado o padre Lancelote viria a confiar o seu trabalho social na China Continental.

“Aprendi com a forma como ele tratava as pessoas, mantinha o sorriso e acolhia as pessoas. Depois de se ter reformado, sempre que alguém o procurava para pedir ajuda, passava-me os casos e pedia para ajuda. Passou-me o trabalho que tinha do Continente. Foi assim que tive a oportunidade de servir as pessoas”, conta Paul Pun, para quem Lancelote Rodrigues era mais que “um bom amigo”. “Quando fui para a universidade em Hong Kong, apoiou-me. Quando fui para a Universidade Columbia, em Nova Iorque, apoiou os meus estudos, em conjunto com outros patrocinadores”, recorda.

Uma pessoa invulgar

Enquanto delegado diocesano da organização não-governamental Catholic Relief Services (cargo para o qual foi nomeado em 1954), o padre Lancelote Rodrigues apoiou refugiados da antiga Birmânia, Indonésia, Malásia, Laos, Camboja, Vietname e Timor-Leste. A missão junto dos asilados vietnamitas perdurou de 1977 a 1991, com o religioso mais uma vez a garantir o realojamento das populações noutros países.

Em 1985, iniciou a acção social no Continente. “Começou a fazer trabalho na China Continental, um grande trabalho. Não ia, claro, como missionário. Pedia ajuda às autoridades chinesas para ir fazer trabalho de apoio social”, conta Leonor Seabra. Do lado de lá da fronteira, organizou projectos para a construção de pontes, creches, escolas, instalações sanitárias, postos médicos e hospitais. Participou ainda em projectos de ajuda aos leprosos e doentes de SIDA e na educação para apoio a portadores de deficiência.

Localmente, foi o fundador da Escola de Santa Teresa, na Ilha Verde, e antes de falecer “ainda ajudou a criar a Associação de Beneficência dos Refugiados”, sob a égide da Caritas. “Já reformado, mantinha um grande contacto com amigos, tentando trabalhar até ao último minuto”, conta Paul Pun, lembrando que o sacerdote “ajudou muitas organizações de assistência social em Macau com apoio de ajuda internacional”.

“Era amigo de muita gente, que o visitou durante este tempo no hospital. Muitas expressaram o seu amor por ele, desejando-lhe melhoras. As pessoas gostavam muito dele. Acho que todos vamos sentir a sua falta. Era bom e acredito que estará no céu”, exprimiu o secretário-geral da Caritas, ontem, dia em que pela última vez visitou o padre Lancelote.

Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses (ADM), recebe a notícia “com grande tristeza”. O padre Lancelote Rodrigues foi um dos homenageados pela organização. “O senhor padre Lancelote não foi uma pessoa vulgar. Foi uma pessoa grandiosa nos seus feitos, mas sobretudo na sua humildade. A lição que ele dá é precisamente uma lição de humildade e de um espírito de caridade sem fronteiras”, sublinha Senna Fernandes.

“Muitas pessoas estão bem – não necessariamente em Macau, mas noutras partes do mundo – graça a esse espírito de caridade do padre Lancelote. São pessoas que passaram de refugiados a cidadãos de estatuto. Não é qualquer pessoa que consegue fazer isto. E não foi um caso ou outro, são vários casos. Esteve à frente de todas as organizações que recebiam e davam apoio aos refugiados”, recorda o presidente da ADM.

O trato pessoal fácil, para além da missão social e pastoral, é uma das qualidades mais destacadas por quantos conviviam com o religioso.“Era uma pessoa de uma afabilidade estupenda. Era uma pessoa muito alegre e não só: sabia sempre dar uma palavra de apoio. Era estupendo”, descreve Miguel de Senna Fernandes.

“No meio do sofrimento, do mal-estar, tinha sempre um sorriso franco. Não era uma coisa forçada. Sorria e dava aquela gargalhada forte, fazia questão de o fazer. No meio da tristeza, muitas vezes da melancolia, era capaz de dar a volta à situação, precisamente porque tinha um espírito muito forte. Inspirava coragem às pessoas”, entende.

Omni sacerdote

Também o presidente do instituto Internacional de Macau, Jorge Rangel, manifestou ontem “dor profunda” com a notícia. “Quem o conheceu de perto sabe que a vida em Macau nunca mais será a mesma para com quem ele convivia e partilhava a alegria de viver e a vontade de servir e abraçar causas nobres”, reflecte Rangel.

Para Leonor Seabra, Lancelote Rodrigues “tem de ser lembrado não só pelo aspecto filantrópico, mas pela pessoa que era”. A convivialidade do religioso é lembrada a par dos seus dotes musicais. “Era um grande músico, um grande cantor. Cantava muito bem, tinha muito boa voz, tocava muito bem”, defende Seabra.

Lancelote Rodrigues era até ontem o director da Academia de Música S. Pio X. Mantinha também as funções de representante dos consulados dos Estados Unidos, do Canadá e da Austrália em Macau.

Ainda estava internado no Centro Hospitalar Conde de São Januário quando recebeu a visita de um representante diplomático norte-americano. “Agradeceu-lhe o apoio. O cônsul dos Estados Unidos em Hong Kong passava vistos para quem necessitava. Colocou muitos refugiados nos Estados Unidos através dos seus contactos”, lembra a investigadora.

“Macau perdeu um grande homem, uma grande figura, que faz parte da história de Macau e que sempre fará. É preciso preservar todas estes grandes homens ou mulheres, que tanto deram a Macau. Ele foi uma dessas pessoas”, diz.

“Tinha qualidades de relação humana muito notáveis e era muito bom cantor, com muito humor, bom conversador. Unia estas dimensões mais sociais, que ele aplicava sempre ao fim ao cabo para ajudar aqueles em necessidade. Tinha contactos sempre tanto a nível local, como a nível internacional”, lembra também o padre Luís Sequeira. “Sentiu-se sempre como omni sacerdote, sempre muito dedicado aos mais necessitados, e muito unido a dois outros grandes homens, como era o padre Luís Ruiz e o padre Nicosia, que está em Coloane”, recorda Sequeira.

O colega também de formação jesuíta destaca também a alegria com que o padre Lancelote vivia e se relacionava. “Era muito boa pessoa, sempre muito aberto a ajudar todos aqueles que estivessem em dificuldade. Depois tinha a sua missão artística e cultural. Sempre, sempre gostava de cantar não só para amigos, mas também para cerimónias litúrgicas. Na Páscoa era sempre ele também a cantar. Essa dimensão da alegria estava muito intimamente ligada à sua personalidade”, descreve.

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