A biografia de Mário Soares: Dos Macaus e dessas porcarias”

macau passado 48Os soaristas – com Soares à cabeça – não esquecem Macau. Pelas piores razões. O novo livro de Joaquim Vieira limita-se a confirmá-lo.

João Paulo Meneses

Como Joaquim Vieira diz na entrevista que publicamos nesta página, não existe grande vontade, por parte dos protagonistas, em abordar certos assuntos que dizem respeito aos momentos mais obscuros do percurso político de Mário Soares – e quase todos esses momentos estão directa ou indirectamente relacionados com Macau.

O trabalho do autor do livro corria, por isso, o risco de ficar um pouco prejudicado – se pensarmos que mais se poderia saber, havendo interesse por parte de alguns dos protagonistas desses casos em fazê-lo. Em pelo menos um caso, Vieira diz que o entrevistado, Almeida Santos, invocou falta de memória para não comentar.

Mas a leitura de “Mário Soares, uma vida” não pode de maneira alguma ser considerada uma perda de tempo. Mesmo nas zonas sombrias, há avanços e fica-se a conhecer um pouco melhor a história.

A verdade é que sendo Soares uma quase unanimidade, a qualidade dos potenciais testemunhos, sobretudo os menos sintonizados com a glorificação do antigo presidente, diminui consideravelmente.

Neste contexto, imagina-se a surpresa que resulta da afirmação feita por Almeida Santos, segundo a qual Soares teve conhecimento prévio do fax enviado por Strecht Monteiro e que deu origem ao escândalo do aeroporto (e ao chamado ‘caso Emaudio’).

Soares sempre afirmou só ter tido conhecimento quando o semanário “O Independente” o noticiou, mas agora Almeida Santos esclarece que “tinha de ter conhecimento. Mas não tem culpas nisso.”

O único que continua a contestar o desconhecimento de Soares é Rui Mateus, antigo braço-direito do líder socialista. E continua, porque Joaquim Vieira descobriu Rui Mateus na Suécia, onde está retirado desde a publicação do livro “Contos Proibidos”, e entrevistou-o. Mateus reafirma de forma clara o envolvimento de Soares nos dinheiros da Emaudio – o que Soares nega terminantemente. Diz Mateus: “Recebemos instruções de Mário Soares para receber Strecht [Monteiro, que representava os alemães da Weidlplan, interessados no aeroporto de Macau] e o dinheiro relativo ao aeroporto de Macau. Não estávamos autorizados a receber dinheiro sem ser por ordens de Soares”.

Joaquim Vieira, a propósito, começa o capítulo “O fax” escrevendo: “Aquilo que parecia uma árvore das patacas, no sentido literal e figurado (e que Soares não podia deixar de conhecer, se não mesmo estimular ou pelo menos permitir) revelar-se-ia, contudo, uma decepção (…)”.

Uma novidade do livro: a abordagem sobre uma hipotética investigação ao próprio ex-presidente, a partir das situações descritas no livro de Mateus. A decisão foi do então procurador Cunha Rodrigues, que terá dito a uma fonte (anónima) de Joaquim Vieira que “isso seria um problema para o próprio regime”. Mas Cunha Rodrigues desmentiu essa versão ao autor do livro. E Jorge Sampaio, então presidente, não quis comentar.

Outra parte onde o livro também é muito esclarecedor é na questão da demissão de Pinto Machado, o primeiro governador nomeado pelo então presidente.

Muitos pormenores já eram do domínio público, mas Joaquim Vieira consegue que Carlos Monjardino diga que “foi Mário Soares que me nomeou, mais ao Vitorino”. Outro dado: a criação da Fundação Oriente foi negociada por Monjardino directamente com Stanley Ho, em articulação com Soares e à revelia do governador – que, neste contexto, apenas aguardou por saber que Soares demitiu o secretário-adjunto Nuno Delerue para regressar ao Porto.

O soarismo, e não apenas Soares, tem pesadelos com Macau e isso percebe-se muito bem em duas declarações de dois entrevistados de Joaquim Vieira.

Bernardino Gomes afirma por exemplo que “Macau criava coisas obscuras” e João Soares diz que «aquilo [Emaudio] contou seguramente com dinheiros que vieram dos Macaus e dessas porcarias”.

VIEIRA, Joaquim – «Mário Soares, uma vida», Esfera dos Livros, Lisboa, 2013 (851 páginas)

 

Joaquim Vieira: “Muito obscuro”

O autor de “Mário Soares, uma vida” responde a algumas perguntas do PONTO FINAL, assumindo  a surpresa por o biografado ter aceite falar consigo. Um contacto que correu cordialmente, excepto quando se falou de Macau. Porque a tutela sobre o território foi o que correu pior em toda a carreira política de Mário Soares.

– Diria que Macau é o ponto negro na vida política de Mário Soares (do ponto de vista das crises e da imagem pública)?

Joaquim Vieira – Macau foi sem dúvida o que correu pior em toda a carreira política de Soares e o que mais contribuiu para afectar a sua imagem pública.

– Será correcto dizer que é também o mais obscuro? Foi aquele em que teve mais dificuldades para investigar?

JV – As coisas estão relativamente à vista, pelo que não há muita dificuldade em investigar (desde que se tenha vontade para isso). Mas não há dúvida de que o caso é muito obscuro (como acontece sempre que se misturam políticos e dinheiro), ainda mais porque quase nenhum dos protagonistas aceita pronunciar-se sobre ele.

– Se tivesse de escrever uma segunda parte, com aquilo que não conseguiu apurar, Macau estaria lá?

JV – Não direi que está tudo investigado, pelo que Macau ainda mereceria ser revisitado nessa perspectiva.

–  Rui Mateus queixa-se de censura/boicote ao seu livro; teme que isso possa acontecer com esta sua obra?

JV – Não me parece que tenha havido censura ao livro de Rui Mateus, e quanto a boicote ainda está por apurar o que na realidade aconteceu. Falei com o editor, Nelson de Matos, que não se queixou nem de uma coisa nem de outra. Curiosamente, quando Soares enviou à editora o seu assessor cultural, José Manuel dos Santos, verificar o conteúdo do livro de Rui Mateus antes da publicação, a sua maior preocupação era que contivesse histórias de mulheres, não de dinheiro – ele lá saberá porquê. Na altura, Soares ainda era presidente, mas as condições agora são diferentes. Não temo boicote e, muito menos, censura. As pessoas são livres de adquirir e ler o livro, se assim o entenderem.

–  Do seu ponto de vista, Soares meteu-se nos negócios de Macau (Emaudio…) para ganhar dinheiro? Mas para financiar o PS ou para beneficio próprio?

JV – A preocupação de Soares, em todas as histórias de dinheiro que conheci dele, sempre foi a financiar os seus projectos políticos, não a de encher os bolsos.

–  Como foi o contacto com ele? Teria feito o livro na mesma, sem a sua colaboração?

JV – O contacto com ele foi muito cordial (excepto a última conversa, mais azeda, onde justamente se falou da questão de Macau), o que me surpreendeu sobremaneira, apesar de saber que Soares é um sedutor. Teria escrito o livro mesmo sem falar com ele, tanto mais que à partida eu estava convencido de que ele não iria aceitar falar comigo.

1 comments

  1. Essa classe política portuguesa dizia-se muito iluminista, eram os reformadores que iam levar Portugal depois do Estado Novo aos padrões europeus e americanos de liberdade e sociedade civil, porque não podíamos cair no comunismo diziam eles.

    Mas mal se transplantavam para Macau, e muitos alinharam para o fazer, deixavam essa nova Europa no velho mundo e criaram em Macau um charco, lamacento, nebuloso, quase um pântano. Deixaram o crime e as seitas crescer, alguns até meteram-se na cama com elas. Chafurdaram e endinheiraram-se numa terra de que muitos deles nunca gostaram, e voltaram todos para Portugal até 1999 para as suas novas casas à beira mar. Essa classe política mal soube aproveitar o potencial do nosso país. Deixaram mal os portugueses de Macau, durante os últimos anos de Portugal no Oriente.

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