Equipa reitoral da São José “dificilmente passaria num concurso internacional”

Ivo Carneiro de Sousa recebeu o PONTO FINAL em casa para falar do Este-Oeste Instituto de Estudos Avançados, mas a conversa rapidamente centrou-se na Universidade de São José, onde desempenhou o cargo de vice-reitor. Admite que conhecia casos de facilitismo por parte de alguns professores, mas sobre as finanças da instituição diz apenas que o último relatório de contas apurou resultados financeiros positivos. Quanto à nova gestão da universidade, diz que é composta por pessoas sem currículo académico na área da investigação científica.

Pedro Galinha

pedrogalinha.pontofinal@gmail.com

– Está na origem do Este-Oeste Instituto de Estudos Avançados. Qual é o objectivo desta espécie de grémio que junta um conjunto de investigadores?

Ivo Carneiro de Sousa – O instituto está publicado em Boletim Oficial desde o dia 1 de Agosto. Junta vários investigadores e tem três objectivos: desenvolver a investigação científica; apoiar programas de formação doutoral e pós-doutoral; fazer consultadoria em ensino universitário. Isto em Macau e na região.

– Há seis anos em Macau, como caracteriza o ensino universitário nesta região do mundo?

I.C.S. – Assiste-se a uma massificação do ensino superior mundial, que é ainda mais intensa aqui porque as universidades chinesas estão em processo de multiplicação. Isso também acontece noutros pontos da região, como Coreia do Sul, Indonésia, Malásia ou Tailândia. Muitos politécnicos estão a transformar-se em universidades e é preciso pensar o que esta massificação trouxe. Escrevi recentemente uma artigo para um jornal académico em que procuro comparar o ensino universitário de agora com o que que se verificava antes desta massificação. A conclusão é evidente: os alunos saem pior preparados do que antigamente. Muitas universidades optaram por ser muito menos académicas e científicas, acabando por ser dirigidas por gestores. Pessoas que transformam as universidades em algo que faz do aluno um cliente.

– Quais são as consequências desta realidade?

I.C.S. – A massificação levou claramente a que existam universidades com duas velocidades. Existem as instituições vocacionadas para a investigação, em que o aluno é convocado para tarefas de investigação (Harvard, Princeton, Cambridge, Oxford, etc.). Nessas universidades, o acesso das classes trabalhadoras é muito limitado, o que nos faz concluir que não existe uma verdadeira democratização do ensino. Depois, existem universidades técnicas, com pouca investigação e com a tal gestão comercial. Estão centradas na avaliação rápida da aprendizagem e disponibilizam diplomas que têm muito pouco valor quando comparados com os das universidades de primeira velocidade.

– Em Macau, no geral, estamos em que velocidade?

I.C.S. – Na segunda. Mas é bom dizer que a Universidade de Macau tem em construção um novo campus [na Ilha da Montanha], está a procurar internacionalizar-se e desenvolver a investigação. Será, pelas condições financeiras que consegue mobilizar, a universidade que se vai internacionalizar mais rapidamente. Tem sistemas de recrutamento internacional por concurso público para dirigentes e professores. Algo que não existe na Universidade de São José, onde trabalhei nos últimos seis anos. Reitores, vice-reitores e professores não são contratados por concurso internacional. Isso é grave. A equipa reitoral que hoje dirige a universidade dificilmente passaria num concurso internacional porque não tem obra científica e experiência académica. São pessoas sem investigação feita e que nunca publicaram.

– Mesmo o caso do actual reitor Peter Stilwell?

I.C.S. – Tem uma tese de doutoramento feita sobre a “A Condição Humana em Ruy Cinatti”, mas não tem obra científica nem investigação. Nunca dirigiu teses de doutoramentos, de maneira que dificilmente passaria num concurso internacional. A Universidade de Macau faz isso com reitores e vice-reitores.

– O desnível é muito grande entre a Universidade de Macau e as restantes instituições de ensino universitário?

I.C.S. – Os concursos internacionais permitem contratar os melhores profissionais e funcionam como as transferências futebolísticas, porque cada instituição oferece condições extremamente generosas para possibilitar a vinda destes trabalhadores. Pelo que sei, a MUST [Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau] não faz concursos internacionais. O Instituto Politécnico e o IFT [Instituto de Formação Turística], que são boas escolas, devem dar o passo para se constituírem como universidades. Têm de ter mestrados nas áreas em que se especializaram e, provavelmente, alguns doutoramentos. Isso é vital para o ensino superior de Macau.

– O que espera da Universidade da Cidade de Macau, que tem agora Rui Rocha à frente do ensino da língua portuguesa?

I.C.S. – Não conheço o passado académico nem a obra científica do Dr. Rui Rocha, mas parece-me ser uma pessoa inteligente e extremamente competente. Pegou no Instituo Português do Oriente [IPOR] numa altura em que muita gente dizia que iria acabar. Recuperou e organizou o IPOR, estabilizando-o financeiramente. Além disso, fez crescer a oferta de português. Penso que a ida do Dr. Rui Rocha para a Universidade da Cidade de Macau tem que ver com o objectivo estratégico de chegar aos países de língua portuguesa. É interessante porque há necessidade do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países Lusófonos ser complementado por um fórum académico.

– Esse papel poderá ser desempenhado pela Universidade da Cidade de Macau?  

I.C.S. – A ida do Dr. Rui Rocha indicia isso.

– No meio de tudo isto, que espaço terá a Universidade de São José?

I.C.S. – Quando cheguei, em 2006, tinha como objectivo abrir um mestrado em história e património e doutoramentos em história. Depois, fui convidado para ser vice-reitor para a investigação e relações internacionais. Propus uma estratégia de investigação assente em três áreas: investigação sistemática sobre as escalas do processo de globalização e o seu impacto na região; investigação sistemática sobre a mudança social (demografia, urbanismo, educação); desenvolvimento de propostas para o desenvolvimento sustentável. Além disso, estabeleci conferências internacionais de dois em dois anos sobre a China e África, lusofonia e BRICS. A ideia era fazer com que os alunos de doutoramento investigassem e apresentassem “papers” nestas conferências. Aqui, em Macau, há uma coisa embaraçosa que deve ser colocada em destaque. Há muito dinheiro disponível para trazer pessoas com algum nome a conferências, mas vêm só uma vez. Porque não há participação científica nessas conferências, ou seja, paga-se turismo académico. A minha preocupação era ter alunos da universidade a apresentar trabalhos originais nestas conferências. Foi um trabalho colossal, até porque muitos alunos não tinham qualquer experiência de investigação.

– A área de investigação na São José desenvolveu-se?

I.C.S. – Sim, sobretudo nos doutoramentos. A universidade tinha o melhor programa de doutoramento de Macau. Tínhamos alunos de todo o mundo – Itália, Turquia, Timor-Leste, China, Hong Kong. Quando cheguei não havia programas de doutoramentos, nem ninguém doutorado.

– Quando saiu da universidade, na semana passada, quando alunos estavam inscritos em doutoramentos?

I.C.S. – Conto 46, contra os dois que encontrei em 2006. Destes, só um terminou. Ambos eram assistentes da universidade e só estavam inscritos por estar.

– O antigo reitor Ruben Cabral, que saiu em Abril deste ano, chegou a dizer a área da investigação era um dos desígnios da universidade. Cumpriu-se esse objectivo?

I.C.S. – Não. A São José construiu-se mais em torno da aprendizagem do que da investigação. É necessário grande estabilidade do corpo de investigadores e disponibilidade financeira. Isso não existe aqui. Vou dar um exemplo. Tivemos dois alunos nigerianos, brilhantes, que eram extremamente pobres e tinham muitas dificuldades em pagar a propina de 50 mil patacas de doutoramento. A dada altura, o reitor auxiliar Padre João Eleutério decidiu dar um ultimato aos dois alunos. Não pagaram e saíram da universidade. Para onde foram? Para a Austrália, onde tinham estado numa conferência. Receberam uma bolsa de doutoramento da Universidade Nacional da Austrália.

 

 

“São José vai ter dificuldades em manter-se”

 

– Como antevê o futuro da Universidade de São José?

I.C.S. – Vejo com bastante preocupação e penso que a universidade vai ter dificuldades em manter-se. O panorama universitário cresceu muito e a Universidade de Macau terá o dobro dos alunos com o novo campus. Recentemente, também me disseram que a São José vai ter metade dos alunos que teve no ano passado. É um decréscimo muito grande. Com a oferta de mestrados por parte de outras instituições, o espaço fica curto. Por outro lado, também me preocupa que a universidade seja dirigida por pessoas que não têm obra científica ou artigos publicados sobre ensino superior. Outro elemento sensível é a dispensa de professores, caso do decano Richard Whitfield. É um sinal chocante.

– O actual reitor, Peter Stilwell, disse no sábado à TDM que a situação financeira da universidade é delicada.

I.C.S. – Mas o último relatório de contas dá lucro.

– Também se levantaram dúvidas sobre o projecto do novo campus da universidade?

I.C.S. – Há uma grande confusão sobre este tema. Sempre fui contra a sua construção porque não se trata verdadeiramente de um campus. Este projecto inclui também uma escola secundária. Por exemplo, nos Estados Unidos, não existe nenhuma experiência deste género. O que há são colégios anexos a universidades, que servem para preparar os melhores alunos para o ensino superior. Em Massachusetts é assim. Neste chamado campus só haverá uma biblioteca, ou seja, vai juntar estudantes de mestrado no mesmo local de alunos mais novos. É um projecto terrível.

– Quanto dinheiro foi gasto no projecto?

I.C.S. – A Fundação Macau doou 150 milhões de patacas em tranches, mas a universidade só recebeu uma primeira parte de 55 milhões que foi utilizada nas fundações dos edifícios. Se o projecto só incluísse a universidade, nem seria necessário usar os 150 milhões da Fundação. É um excesso. De que são feitas as universidades? São apenas edifícios rectangulares, que têm de ser funcionais. Só isso.

– Nos últimos anos, ouvimos falar em “facilitismo” na universidade. Como comenta esta crítica?

I.C.S. – São críticas que fazem algum sentido, mas também há argumentos enganadores. Os nossos programas de doutoramento eram muito rigorosos. Há doutorados da São José que hoje trabalham em Hong Kong, Noruega e Dinamarca. Diria que os programas são mais exigentes do que em Portugal. Nas licenciaturas era diferente. Alguns professores passavam quem não devia. Eu cheguei a dar zero a mais de vinte alunos por terem apresentado trabalhos retirados da Wikipedia.

– Os alunos chegam mal preparados?

I.C.S. – No geral, os alunos têm pouco conhecimento do mundo e falta de visão. Chegam de um ensino muito memorial e mecânico. Falta filosofia e história nos currículos. O ensino é feito em inglês e existe um grande desnível entre os estudantes. Notam-se diferenças grandes entre quem vem de um ambiente anglófono e os chineses.

1 comments

  1. Desejo, felicitar o jornal Ponto Final, pela excelente entrevista, ao Professor Ivo Carneiro De Sousa, de quem tive o privilégio, de ser aluno e recordo com muitas saudades as, aulas de História de Timor, na FLUP. Saudações de Pedro Múrias.

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