
A longa parceria entre a Dream Theater Association e a Casa para Anciãos da Paróquia de Santo António já resultou em espectáculos levados a palco com os mais velhos no centro da dramaturgia. Do projecto mais recente, resultou a exposição “Lighted Garden – Elderly lifestory books”, que reúne 31 livros artesanais, em que cada um dos autores narra, em texto, desenho e fotografia, histórias de vida que em algum momento desembocaram em Macau.
Texto: Sílvia Gonçalves*
Fotografia: Eduardo Martins
Chegou a Macau em 1987 para deitar mãos às máquinas numa fábrica têxtil, num tempo em que a indústria se afigurava como escapatória à jorna infinita nos campos de arroz que conheceu desde criança. As mesmas mãos deram forma a um livro artesanal onde se contam retalhos de uma vida votada à subsistência e à dança, narrativa que culmina com a imagem recortada de um vestido cor-de-rosa em cabaia chinesa, peça que traduz o desejo de menina que o trabalho no campo não deixou cumprir. Tam Chong Oi, de 71 anos, é autora de um dos 31 livros que compõem a exposição “Lighted Garden – Elderly lifestory books exhibition”, projecto conjunto da Dream Theater Association e da Casa para Anciãos da Paróquia de Santo António, que até 1 de Agosto se apresenta na Biblioteca da Cáritas, instalando-se depois, entre 3 e 9 de Agosto, na Biblioteca Sir Robert Ho Tung, e, por fim, nas Mong-Ha Villas, de 11 a 16 de Agosto.
“AO TRABALHAR COM OS MAIS VELHOS, O NOSSO GRUPO CRESCE”
“Eu dou-lhes aulas de teatro e oiço as suas histórias, e penso que tem muito significado contar a mais pessoas as suas histórias, tem muito significado que os mais jovens as ouçam. Porque às vezes eles pensam: ‘Sou inútil’, eles dizem-no. É importante a sua comunicação com os outros, com os jovens. As suas histórias são engraçadas, interessantes, trazem-nos mensagens, podemos aprender tantas coisas com eles, eles não são inúteis”, diz Jason Mok, sobre os 31 idosos da Casa para Ansiãos da Paróquia de Santo António que envolveu no projecto de concepção manual de livros autobiográficos, de grande formato, onde, entre desenhos, textos, cartas, fotografias, se contam histórias que desembocam em desejos e votos soprados à família e amigos, presentes ou que a vida empurrou para longe.

“Decidimos fazer livros artesanais porque habitualmente fazemos performances com eles, mas o problema da performance é que eles contam a sua história mas nem todos gostam de representar, alguns preferem fazer trabalhos manuais. E na performance o tempo é limitado, mas este livro, podem mostrá-lo a toda a gente, levá-lo para casa”, enquadra o encenador e actor, que é também director artístico da Dream Theater Association, que fundou em 2008.
Formado em Teatro pela National Taiwan University, Jason Mok – que colabora com a Casa para Ansiãos da Paróquia de Santo António desde 2014, por convite da sua directora, Lidwina Lei -, explica o vínculo que o liga ao trabalho comunitário com idosos. “Por causa da ligação emocional, a ligação de coração com eles. Ao trabalhar com os mais velhos, o nosso grupo cresce, aprendemos com eles. Vemos mais longe, abrimos os horizontes, ao desenvolver trabalho comunitário com eles”.
Concretizados os livros ao longo de 16 aulas, realizadas em 2019, a exposição deveria ter acontecido em Março, não fosse o coronavírus trocar-lhes as voltas. “Estes livros agora expostos são cópias exactas dos originais, que os idosos levaram para casa. Os voluntários fizeram as cópias, nos originais estão as fotografias, aqui estão as cópias. Era importante que eles levassem os livros para partilhar com a família, por isso decidimos fazer cópias para a exposição”, explica Jason. Carmen Kong, também membro da Dream Theater Association e actriz, dá conta de uma segunda fase do projecto, a concretizar em 2021. “Esperamos ter uma exposição maior no próximo ano, com os livros originais, no Jardim de Lou Lim Ieoc”.
A DOR DA AUSÊNCIA GUARDADA NUMA CARTA
“Gosto de viajar, gosto de aprender coisas novas”, escreveu Wong Kit Leng no preâmbulo de um livro que arranca com várias imagens de incursões na China. Natural de Cantão, onde era professora e directora de um jardim-de-infância, Wong Kit Leng chegou já viúva há cinco anos a Macau, para viver com filha, genro e neta. Nos primeiros desenhos do livro, a representação da grande casa de madeira onde viveu, do jardim, das flores e vegetais que continuou a plantar mesmo quando se mudou para um prédio alto na principal cidade da província de Guangdong.

No envelope fechado com um laço, que em todos os livros leva a designação “Caixa do Tesouro”, Wong, de 66 anos, guarda as fotografias mais preciosas, essencialmente em viagem com o marido e a filha. A fechar a narrativa, três envelopes, uma pequena carta em cada um. A primeira, dirigida aos pais: “Muito obrigada, mãe e pai, por nos levantarem, a mim e aos meus irmãos. Trataram-me muito bem. Ainda que já tenham partido há mais de 10 anos, ainda sinto muito a vossa falta. Meu pai, lamento no meu coração que certo ano, quando regressei a casa para o Ano Novo Chinês, tenha entregue os dois envelopes de Lai Si à mãe”. Explica depois Jason “que o pai não ficou feliz com esse gesto e ela nunca imaginou que o pai ficasse tão magoado e pede-lhe aqui desculpa”.
Se a terceira carta é dirigida a antigos colegas da escola que hoje vivem nos Estados Unidos, a segunda é remetida ao marido, onde Wong Kit Leng traduz, numa frase breve, a dor da ausência: “Sinto muito a tua falta, sinto falta do tempo em que podia contar contigo e não ter nenhuma preocupação. Naqueles dias não havia nenhuma preocupação”.
O DESEJO DE UM VESTIDO QUE O TRABALHO NO CAMPO IMPEDIU DE CUMPRIR
A seu lado, na Biblioteca da Cáritas, Tam Chong Oi, de 71 anos, segura no colo o seu livro. Começa a desfiar uma história que começou, ainda jovem, nos campos, para ajudar a compor o sustento do agregado, em Kaiping, na província de Guangdong. A viragem dá-se em 1987, na transição com a família para Macau, para tomar lugar na indústria têxtil. “Vim para trabalhar numa fábrica de roupa. Tive vários empregos, o segundo foi num restaurante, o terceiro a fazer limpezas num hotel”, o lugar onde mais gostou de trabalhar.
Aponta para um desenho onde se representou, aos 10 anos, a carregar às costas a irmã para a escola. “Quando era nova trabalhava nos campos de arroz, com animais”. Entre as muitas fotografias com marido, três filhos e netos, repetem-se aquelas em que Tam dança, sempre com vestidos por si desenhados e confeccionados. “Fiz este vestido para mim com materiais reciclados. Gosto de dançar nas praças, com outras senhoras. Costumo fazê-lo no Jardim Camões, uso os leques, não as espadas. Faço-o todos os dias, entre as 7 e as 8 da manhã”.
Mas não só. Tam também participa em concursos de dança. Em algumas das imagens, ostenta os troféus conquistados em provas individuais, já nem sabe quando. “A primeira vez que ganhei foi há muitos anos”.

No topo de uma das páginas, Tam escreveu: “A família é o meu presente, quero recordar cada um deles”. E eles lá estão, o marido, a filha, os dois filhos, os cinco netos. Abre suavemente os três envelopes, onde guarda pequenas cartas para cada um deles, que soam sobretudo a manuais de instruções. Para a filha: “Sê disciplinada, tu e os meus netos. Tenham muita saúde. Netos, ouçam o que vos dizem o pai e a mãe, ajudem-nos a fazer o trabalho da casa”. Para os dois filhos: “Trabalhem muito. Estuda muito [para o mais novo]. Sejam felizes, tenham um bom futuro e boa saúde”. Na terceira carta, dirigida ao marido, um registo de comicidade que arranca em todos a gargalhada: “Desejo-te boa saúde, que vivas até aos 100 anos. Cozinha todos os dias boas refeições para mim. Ouve-me”. Tam explica depois que é o marido quem compra os alimentos e cozinha para ela e toda a família.
Logo a seguir, a fotografia em que Tam Chong Oi dança em palco, numa peça que o Dream Theater apresentou em 2019, “Be my old friend”. “Foi no Fringe Festival, cada um deles partilhou as suas histórias, nesta peça. Ela disse que adora dançar, então dançámos”, conta Jason. O livro termina com uma montagem em papel. Na primeira imagem, Tam colocou sobre si um longo vestido azul que gostaria de ter sentido sobre a pele; na segunda imagem, o uniforme que envergava nas limpezas do hotel. Por fim, na terceira imagem, esconde-se o desejo de menina, nunca concretizado. Vestido cor-de-rosa, com corte de cabaia chinesa. “Quando eu era jovem, imaginava-me muitas vezes com um vestido assim. Mas não podia tê-lo, trabalhava nos campos. Por isso coloquei-o no meu livro”. E está feliz por ter feito este livro? “Estou muito feliz por ter feito este livro, porque as memórias da minha juventude regressaram”.
*Com Ka Kio Mok