“A dança não me interessa de todo”

2. Kitt Johnson  - Foto de Claudia Aranda - small
FOTO DE CLÁUDIA ARANDA

A coreógrafa dinamarquesa Kitt Johnson surpreendeu o público e habitantes do Iao Hon com uma intervenção artística que alerta para a pressão ambiental que se sente no território. O festival OFF/SITE 2015, organizado pela Associação de Artes Workshop Experimental Soda-City, prossegue este fim-de-semana com as actuações de quatro bailarinos locais.

Cláudia Aranda

Kitt Johnson regressou este ano a Macau para actuar no festival OFF/SITE 2015 e levar à comunidade do Iao Hon uma intervenção artística que envolveu um passeio urbano pelas ruas menos turísticas, mas densamente povoadas do bairro na zona norte. Entre a surpresa e a gargalhada, tanto o público como alguns atónitos habitantes da comunidade participaram com entusiasmo na acção, que envolveu uma recolha de lixo e momentos de reflexão – trabalho físico e intelectual associados, um conceito sempre presente no trabalho da coreógrafa. Depois de realizada uma rota pelo bairro, os elementos do público, estendidos no chão numa esquina do Iao Hon, foram convidados a abstraírem-se do som das motorizadas e dos autocarros através da voz gravada de Kitt Johnson invocando uma época quase imaginária em que o território era habitado apenas pela natureza.

Sábado foi também dia de actuação de Candy Kuok, directora artística da Associação de Artes Workshop Experimental Soda-City, que organiza o festival “OFF/SITE: Off the stage – on the Site” desde 2013. Kuok optou por uma actuação nos espaços e varandas interiores de um prédio do Ian Hon, que exigiu da bailarina um trabalho prévio de preparação com os moradores.

Kitt Johnson visita o território desde há alguns anos, tendo desenvolvido um projecto entre 2011 e 2013, a convite do Centro Cultural de Macau, que incluiu residências artísticas em Copenhaga para bailarinos locais e conduziu posteriormente ao estabelecimento do festival OFF/SITE. Kitt Johnson é a mentora do projecto “Mellemrum”, nome da bienal “site-specific” de Copenhaga, organizada desde 2008. A artista fundou a companhia X-act em 1992 e, desde então, criou mais de 30 bailados a solo. Johnson já foi distinguida com diferentes galardões. Na Dinamarca recebeu por várias ocasiões o prémio Reumert, que premeia artistas em diversas áreas, sendo que em 2015 recebeu a distinção de “Dancer of the Year”, pelo solo “Post No Bills”.

O festival OFF/SITE 2015 prossegue este fim-de-semana com as actuações de Anna Cheong, Cita Kuong, Oscar Cheong e Lam Ka Pik.

3. Kitt Johnson  - Foto de Mike Ao Ieong
Foto de MIKE AO IEONG

PONTO FINAL – Em que é que consiste o conceito “Mellemrum”?

Johnson – “Mellemrum” significa o espaço entre espaços. É uma palavra muito exacta que define a possibilidade e as falhas entre espaços, que são as coisas pelas quais passamos e não notamos. Vemos os espaços grandes e bem definidos, mas há também espaços no meio, que não vemos. “Mellemrum” é também a possibilidade de mudança, de ver o desconhecido e o não-realizado. O projecto também esteve na Hungria e eles têm uma palavra específica. Em Macau, não conseguimos encontrar uma palavra rigorosa e Candy [Kuok] escolheu as palavras “Off Site”, que penso que são perfeitas e encaixam de certa forma no conceito do que se faz em Macau, porque está fora do local convencional de espectáculo.

– Quais foram as motivações para criar o Mellemrum?

K.J. – Trabalho em “site-specific” desde os anos 1980. Para mim, já não traz nada de novo. Para mim “site-specific” apenas significa ter em consideração o espaço quando compomos uma criação. Uma produção para uma sala de espectáculo também é potencialmente “site-specific”, se usarmos o espaço de uma forma que desempenhe um papel activo na nossa peça. Mas, se usarmos o termo “site-specific” no sentido em que é fora dos lugares convencionais de arte, fiz isto desde os anos 1980. Num dado momento, senti que deveria criar uma plataforma para o intercâmbio artístico e cultural e desenvolver este tipo de trabalho com as comunidades, entrar em bairros que eram negligenciados, com má reputação, uma população com muitas dependências: como é que podíamos ajudar a mudar isso? Criar novas histórias em lugares que só conheciam narrativas negativas. Aqui em Macau não colaboramos tanto com os locais. Mas, na versão dinamarquesa, geralmente envolvemos os habitantes nas produções, eles entram como artistas, como guias, contam histórias, eles são envolvidos no processo artístico.

– É difícil envolver a comunidade em Macau?

K.J. – Estou cá por um período muito curto. Confiaria mais esse papel a Candy, de incluir sempre este trabalho. Penso que para o futuro é possível [envolver a comunidade], mas a realidade aqui também é diferente, porque uma boa parte dos bailarinos profissionais têm empregos à parte, uns têm empregos a tempo inteiro, outros a tempo parcial. Isso significa que os recursos, em termos de tempo, não são tão fortes como na Dinamarca. Porque quando começamos a envolver-nos com as comunidades, essa tarefa consome tempo, energia. É um trabalho completamente diferente do trabalho com profissionais. Não queremos forçar ninguém a participar. E isso exige muito tempo, descobrir o tipo de trabalho que se ajusta, que seja interessante, que possa envolver as pessoas, o que faz sentido para aquele bairro, o que é realista, em termos artísticos. Tudo isso consome tempo. É preciso ganhar a confiança do bairro, manter encontros com a comunidade, fazer trabalho comunitário, isso exige muito esforço. Sei que a Candy está interessada nesse tipo de trabalho, mas ainda não teve recursos suficientes para desenvolver uma ligação com a comunidade.

– Um dos objectivos deste trabalho é interagir com a comunidade. Na sua coreografia no Iao Hon, convidava as pessoas a apanhar o lixo do chão. O objectivo é transmitir uma mensagem sobre o ambiente?

K.J. – Quando chego a um bairro tento perceber o que poderá ser necessário ali e depois deixo que isso defina o que vamos fazer. Penso que não é só aqui, é um problema global, mas em Macau [o ambiente] é uma questão muito urgente, porque é um lugar muito pequeno, onde a densidade populacional é muito elevada, a terra, a natureza, estão sob uma pressão enorme e o ar está totalmente poluído, não se pode beber a água, o mar está contaminado. Então senti que deveria introduzir esse tema. Pensei começar de uma forma muito prática e pragmática, fácil e acessível, que é: “Vamos recolher o lixo” para alertar [as pessoas]. Depois, decidi fazer uma pequena viagem na natureza, estabelecer uma ligação do corpo à natureza e ao ambiente. Mas, cada iniciativa será sempre muito diferente, conforme as necessidades. O projecto que fiz na Hungria, por exemplo, aconteceu por altura da grande crise dos refugiados na Europa [em Setembro]. Alguns dos artistas optaram por fazer um trabalho muito político. É importante avaliar o que é realmente relevante naquele momento.

– Onde é que a dança encaixa neste tipo de intervenção?

K.J. – A dança não me interessa de todo, nunca me interessou. Estou interessada no corpo, na forma como o corpo e a mente comunicam, na relação entre a mente, o corpo e o ambiente. A dança é um instrumento, como qualquer outro, qualquer forma de expressão artística pode ser usada neste tipo de intervenção. Mas, como sou uma pessoa física, estou interessada no corpo. A dança para mim tem sido a via, mas a dança em si mesma não me interessa.

– Mas começou por ser bailarina.

K.J. – Não. Comecei por ser corredora dos 800 metros. Fui corredora durante dez anos e só depois comecei a dançar. Cheguei à dança já com 20 e poucos anos, o que é muito tarde para uma bailarina. Eu sabia que tinha que ir através desta via para mudar os padrões do meu corpo, através da dança. O corpo dos atletas é muito diferente, precisava de mudar o corpo para ser capaz de fazer mais coisas, não bastava a resistência. Ser capaz de usar o corpo para expressar movimento, para reunir informação, quer em termos físicos, como a nível intelectual e artístico. A dança era necessária para mim. Mas nunca procurei reproduzir uma certa técnica de dança em palco. O que é difícil, porque o corpo é conservador, tende a aprender modelos e a mover-se dentro deles. Mas, tento encontrar uma expressão corporal que não revele nenhuma forma específica de dança ou de outra técnica, opto por movimentos não codificados. Na Dinamarca trabalho com pessoas com experiências muito diferentes. Uma é actriz, outra é bailarina, outra trabalha com a voz, outros são músicos, mas eles usam o corpo. Tento encorajá-los a não reproduzirem uma técnica, porque uma técnica é apenas um instrumento.

4. Candy Kuok - Foto de Mike Ao Ieong
Foto de MIKE AO IEONG

– O que é que encontrou da primeira vez que chegou a Macau?

K.J. – A primeira vez fiquei chocada ao ver uma indústria do jogo tão dominante. Mas após algum tempo apercebi-me que Macau é muito mais diverso, tem muito mais facetas do que a do jogo, o que é muito bom. O primeiro projecto foi no Centro Cultural de Macau. Não houve envolvimento com um bairro, desenvolveu-se num ambiente protegido porque permanecemos dentro dos domínios do centro cultural. Mas penso que foi o início perfeito porque foi muito mais do que estar num laboratório fechado. Foi quando conheci e comecei a trabalhar com a Candy, com o Oscar [Cheong], que actua no próximo fim-de-semana, com a Jenny [Mok] que actuou no fim-de-semana passado e muitos outros.

– Quem é que decidiu ir para o Iao Hon?

K.J. – A Candy. Ela é que concebeu este festival OFF/SITE. Ela teve outro projecto numa comunidade – isto não é novo para ela. O que é novo é a ideia de fazer percursos e de interligar performances, isso é novo no trabalho dela, e foi introduzido no festival há dois anos. Há um ano vim fazer um laboratório, a Candy escolheu o bairro, e em conjunto tentámos mapear, decidir quais as fronteiras, quais os territórios no bairro nos quais nos interessava trabalhar. Fizemos um workshop, escolhemos três participantes para continuar este ano e desenvolver o seu trabalho, que vão actuar este fim-de-semana.

– O que é necessário para os bailarinos locais atingirem qualidade?

K.J. – É preciso um investimento imenso, um empenho total, 24 horas. É preciso estar sempre presente, alerta, consciente do nosso corpo, preparados para sermos inspirados. Exige questionarmo-nos constantemente, contestar ideias artísticas, fazer pesquisa. Há um ponto da nossa carreira que temos de fazer pesquisa horizontal para obter informação. Noutro ponto da carreira devemos fazer uma pesquisa vertical, no sentido de ir fundo, aprofundar e explorar mais. É necessário pesquisar, questionar e trabalhar o corpo, sempre. A pesquisa pode passar, por exemplo, por andar nas ruas, falar com as pessoas, desenvolver a capacidade de comunicar e de obter informação, encontrar histórias, descobrir as vidas das pessoas, os tópicos de discussão, de conflitos, as agendas de um certo lugar. A outra parte da pesquisa passa por estudar a história do lugar, ir aos arquivos locais, falar com pessoas importantes do bairro, que o conhecem. Em termos gerais, é importante fazer aulas, workshops, não de forma passiva, mas como um estudante que pensa e reflecte, que assume a responsabilidade de ser pró-activo na aula. Pensar, questionar, estar sempre pronto para aprender mais. Tal como crescemos enquanto seres humanos, também temos de crescer como artistas, mas é preciso empenho.

 

 

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