“Examinar a morte parece que apenas nos lança mais profundamente para as antíteses da percepção e da existência”

edgar martins

O fotógrafo Edgar Martins anda às voltas com a morte. Referências e imagens históricas, fotografias no Instituto de Medicina Legal de Portugal e uma perspectiva filosófica integram o trabalho do artista.

João Paulo Meneses

Na primeira vez em que se referiu a este novo projecto, Edgar Martins descreveu-o como “incrível” por significar “um claro corte” com os seus projectos anteriores. Semanas mais tarde, o Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) divulgou que “pela primeira vez na sua história abriu as portas a um olhar externo, apostando na sua relação com a arte”. “O premiado fotógrafo português Edgar Martins trabalhou durante vários dias nas instalações da sede do INMLCF, em Coimbra, fotografando objectos relacionados com o tema”, explicava.

Ao PONTO FINAL, Edgar Martins explica como nasceu o projecto. “Em 2011, um grande amigo meu foi capturado no campo de Guerra na Líbia pelas milícias pró-Kadafhi, juntamente com três outros jornalistas, durante uma reportagem fotográfica. O seu nome era Anton Hammerl, um fotógrafo sul-africano de renome. Ao longo de mais de dois meses, a família e os amigos (incluindo eu próprio) fizeram uma campanha vigorosa pela sua libertação. No dia em que se esperava que ele fosse solto, descobrimos que o Anton não fazia parte do grupo dos reféns libertados”, recorda.

“Naquela noite, assim que os três jornalistas sequestrados com Anton cruzaram a fronteira com a Tunísia, informaram-nos de que Anton havia sido baleado e morto, com uma bala no estômago, logo no primeiro dia em que foram detidos pelas forças de Khadafi. O seu corpo foi abandonado no deserto da Líbia, porque os ferimentos eram graves demais para que conseguisse sobreviver. Até hoje não recuperámos os seus restos mortais”, conta o fotografo português.

“No dia do funeral de Anton, fui uma das três pessoas convidadas pela família para lhe prestar uma homenagem. Durante o evento, o filho mais velho do fotógrafo veio perguntar-me o que era a morte. Nesse dia percebi que nunca tinha pensado realmente sobre este assunto. Não estava sequer preparado para responder a esta pergunta. Não sendo uma pessoa religiosa, eu não tinha uma resposta clara para o filho do Anton. E, então, apercebi-me de que não era capaz de consolar um menino de nove anos, não só porque não sabia o que responder mas porque não conseguia encontrar sentido na miríade de questões que a morte levanta. Este incidente plantou em mim uma semente, uma ideia que revisito neste projecto”, explana detalhadamente o fotógrafo sobre a motivação inicial para o projecto.

Foi em 2012 que Edgar Martins apresentou ao Instituto de Medicina Legal a proposta de trabalhar através das imagens o tema da morte. “O projecto foi acolhido com muito entusiasmo e interesse. (…) O apoio que me tem facultado tem sido tremendo, e a prestação e contribuição da direcção e dos funcionários, louvável”, regista o fotógrafo.

Tendências de representação da morte

Voltemos à questão da morte, e no que a torna “fascinante” para Edgar Martins: “A consciência da morte e da finitude temporal introduz nas nossas vidas a consciência da perda: a perda das certezas, da segurança e, ultimamente, da identidade e da personalidade. A nossa desconfortável relação social com a morte, a tragédia e o controle colocam questões importantes, que por sua vez espoletam outras perguntas em torno da epistemologia, da metafísica e sobre a concepção que a humanidade faz de si”.

Martins lembra que “somos todos iguais nesse sentido e partilhamos o mesmo destino”. “Examinar a morte parece que apenas nos lança mais profundamente para as antíteses da percepção e da existência, para a exploração dos limites e das fronteiras instáveis. Embora a definição de morte, na nossa cultura, continue firmemente enraizada numa compreensão biológica do mundo, a morte é muito mais do que um mero facto biológico. A morte é, em última instância, uma construção social”, reflecte.

O fotógrafo quer explorar as mais variadas contradições que o tema sugere. “Este projecto propõe-se escrutinar, expor e colocar em tensão muitas das contradições e problemas inerentes à representação da morte, ao mesmo tempo que tenta compreender o que a morte representa através de uma narrativa fundamentalmente humana. Estas intenções irão provavelmente colidir, sobrepor-se e fundir-se, revelando a fragilidade dos nossos sistemas perceptivos e cognitivos. Apesar de existir uma vasta literatura e pesquisa sobre a morte e a sua representação, continua a faltar uma síntese abrangente, capaz de reflectir sobre o tema numa perspectiva mais envolvente”, admite.

O novo projecto com o Instituto de Medicina Legal “propõe uma aproximação ao tema, simultaneamente objectiva e especulativa, com uma dimensão indubitavelmente humanista”, antecipa-nos. “Irá incluir referências históricas, a apropriação de imagens históricas, novas imagens produzidas no decurso do trabalho, entre outros. Adicionalmente, irá olhar para as condições de produção e recepção deste tipo de imagens, analisar e desconstruir tendências na representação da morte”, junta.

Exposições, seminários, mesas-redondas e um livro

Sobre a concretização do trabalho, Edgar Martins reconhece que se trata de um “projecto bastante multifacetado, com uma abordagem transectorial, incluindo um projecto de conservação, exposições, seminários, mesas-redondas e, ainda, um livro”. “A exposição em si contará com fotografia, instalação, escultura e a marcará uma certa ruptura com a metodologia de trabalho que tenho desenvolvido nos últimos anos. Só assim consegui abordar a temática em questão”, explica.

O fotógrafo não deixa de esclarecer o que há de “incrível” na morte. “Compreender o que representa a morte, como nos havemos de relacionar com ela, se constitui um processo ou um mero evento, etc., são questões que não são susceptíveis de ser intelectualmente resolvidas apenas dentro da comunidade científica e médica. É na esfera da filosofia, da metafísica e da arte que poderemos verdadeiramente abordar este tema”, entende.

Mas Edgar Martins também vai às raízes da relação entre morte e arte. “A fotografia sempre esteve inextrincavelmente relacionada com a morte. Em grande parte, a narrativa de Roland Barthes em ‘A Câmara Clara’ relaciona-se com isso. Neste texto, Barthes chega à conclusão de que toda a fotografia contém o sinal da sua morte, e de que o cerne da fotografia é a mensagem ‘Isto foi’. Mas, teoria à parte, temos a fotografia ‘post-mortem’, a fotografia forense, o ‘tableaux mordant’, entre outros. A violência, obviamente, tem sido um tema predador dos media e onde existe violência, o tema da morte geralmente também aparece”.

Outra das ideias que guiam o projecto é a convicção do fotógrafo de que a conceptualização da morte e o momento após a morte “é uma área que é amplamente ignorada pelos meios de comunicação”. “Como as famílias e os amigos aceitam e lidam com a morte de um ente querido é um aspecto importante no processo da morte, mas são normalmente omitidos pelos media, porque é considerado um tema sem acção ou excitação. As consequências deste tipo de omissão ou de fraca representação são os temas essenciais da pesquisa”, diz.

O trabalho foi iniciado em 2012, e as fotografias começaram a ser registadas em 2014. Porém, ainda falta algum tempo até o resultado da pesquisa chegar ao público em forma de arte. “Este projecto vai ter um período de gestação de 18 meses e será completado apenas em 2016. Até lá pretendo visitar mensalmente todas as delegações do instituto”. Concluído, o trabalho de Edgar Martins poderá ser visto em Lisboa, Liverpool e Londres. E em Macau, quando volta a mostrar o seu trabalho? “Quando surgir uma oportunidade que não possa recusar”, promete o fotógrafo.

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