“Quando a pessoa gosta muito do que faz, tem empenho, isso é transpirável.”  

Sofia Areal vai estar a pintar em Macau durante as próximas três semanas. O público vai poder ver o resultado dia 12 de Dezembro na Casa Garden.

Cláudia Aranda

Sofia Areal - Foto Claudia Aranda 4Sofia Areal 1

Sofia Areal é uma das pintoras portuguesas mais importantes da sua geração, uma artista plástica a tempo inteiro que tenta com o seu trabalho transmitir ”optimismo”. “Não sou adepta da infelicidade” afirma a pintora, que não separa a vida da arte e que chega pela primeira vez a Macau com a intenção de fazer “uma reciclagem visual”.

Sofia Areal nasceu em 1960 e expõe desde os anos de 1980. A sua pintura é sobretudo “intuitiva, ligada aos sentimentos, expressionista, de emoções”. Já houve quem visse na sua obra influências dos traços não-figurativos do americano Sam Francis ou do expressionismo abstracto do russo Mark Rothko.

A artista mostrou surpresa com o que viu na mostra artística inserida no V Salão de Outono e do prémio de artes plásticas da Fundação Oriente, exposta na Casa Garden. “Surpreendeu-me a qualidade técnica. Acho que há trabalhos sérios, no sentido de serem honestos para consigo próprios, e que têm a sua singularidade”, disse a artista ao PONTO FINAL numa conversa mantida ontem, entre a Casa Garden e o Jardim Luís de Camões.

Sofia Areal vai estar em residência artística durante as próximas três semanas. O resultado vai poder ser visto a 12 de Dezembro, data da inauguração da exposição na Casa Garden.

– O que é que a levou a seguir arte?

Sofia Areal – Desenhar e pintar sempre fizeram parte da minha vida. Há uma altura por volta dos 11, 12 anos, que é quando os miúdos começam a interessar-se por outras coisas – eu continuei a pintar. Mais tarde fui para Inglaterra estudar artes. É uma coisa de que sempre gostei. O meu pai é pintor [António Areal], tenho uma família ligada às artes, foi um percurso natural. Foi o caminho que me era mais atraente. Quando se é novo o leque de possibilidades é tão grande que até é assustador. Eu segurei-me àquilo pelo que sentia mais atracção, as artes. Hoje em dia a minha vida não se separa da arte.

– A ida para Inglaterra estudar foi importante?

S.A. – Inglaterra foi muito importante. Tinha 17 anos, não falava inglês, fui viver para um quarto alugado, foi um percurso de independência. Na altura, em 1978, para uma mulher portuguesa representava um passo gigante na sua independência, quebrar barreiras, fronteiras, ser um adulto, sem protecção familiar. Foi um mundo novo que me transformou e libertou em mim muito da pessoa que sou hoje em dia.

– Em termos artísticos o que é que foi marcante?

S.A. – Foi o sentir-me confortável, satisfeita por ter encontrado um sítio em que há reconhecimento por todas as pequenas mostras de liberdade, vivia-se 50 anos à frente a nível de comportamento, de atitudes, de visão, de abertura de espírito, mas sempre com respeito pelo próximo. Essa profunda liberdade mudou a minha vida. Foi a oportunidade de estar próxima de uma quantidade de gente nova a iniciar os primeiros passos como artistas. Isso foi determinante, a possibilidade de estar lá e ver e não estar apenas a ver nos livros e nas revistas.

– Acabou por optar pela pintura.

S.A. – Quando fui para Inglaterra ia fazer desenho de tecido, gostava do lado do padrão, da repetição, depois desisti porque é um trabalho muito moroso e a pintura é imediata e isso atrai-me.

– O que é que funcionou a seu favor para conseguir afirmar-se na pintura?

S.A. – Provavelmente uma insegurança poderosa em relação ao mundo em geral, que fez com que me tivesse mantido junto à pintura, ao desenho. Faço tapeçaria, cenários, tenho todo um lado ligado ao audiovisual, no qual me sinto profundamente segura. Não é só uma questão de medo, é um campo que realmente me atrai muito, gosto e sinto-me confiante em relação à minha pessoa ao fazer esse trabalho. Penso que também transmito confiança às pessoas ao verem o meu trabalho, penso que as pessoas vêem aquilo que pretendo dar, que é firmeza, determinação, optimismo, pontaria, um trabalho constante para chegar a algo de mais sólido. Há um trabalho forte, todos os dias, trabalho oito horas por dia. Há uma frase famosa de Kandinsky que diz, “espero que a inspiração chegue quando estiver a trabalhar”. Quando a pessoa gosta muito do que faz, tem profundo empenho, isso é transpirável. O insistir permite que a pessoa vá sendo reconhecida pelo seu trabalho, pela atitude, é outra vez esta forma redonda que, aliás, é muito comum no meu trabalho, uma linha que continua sempre a circular.

– Porquê essas formas circulares, geométricas no seu trabalho ?

S.A. – Comecei por fazer naturezas mortas e paisagens, achava que não tinha imaginação. Acho que amo profundamente o real e do real extraio bocadinhos que me permitem fazer um quadro grande. É como se estivesse a olhar pelo microscópio um bocadinho de uma folha e nesse bocadinho vêem-se veios, cores diferentes. Transformo o micro em macro. A forma circular, com o tempo, tornou-se parte de um vocabulário, as formas cheias, vazias. É, na verdade, um ciclo da vida que se renova.

– Há um significado místico?

S.A. – Místico virado para um lado religioso não é com certeza. Mas há um lado profundamente espiritual. Quero no meu trabalho transmitir sentimentos positivos. Poderia fazer como alguns belíssimos artistas – por exemplo, a Paula Rego, faz trabalhos em que o feio, o brutal, o desconfortável existem e é um belíssimo trabalho. Não me interessa transmitir esse tipo de sensação para o espectador. Porque ao ser pintora a tempo inteiro, sei que tenho um público – não quer dizer que esteja a pensar como agradar o público. Mas interessa-me que o público tenha uma visão optimista do meu trabalho, que o meu trabalho lhe dê energia, provoque sensações de continuidade numa vida que, porventura, possa ser difícil. Penso que sim, que isto implica um lado espiritual, porque implica um lado de psicologia activa. Há quem tenha rotulado o meu trabalho de decorativo, não enjeito em nada que lhe chamem decorativo, a mim interessa-me o belo, no sentido estético. Interessa-me o belo na vida, na arte, nas pessoas. O bom gosto apenas não vejo razão de ser. No avião estava a ler um livro de Fernand Léger que fala da importância do belo ser acessível a todos. Isso interessa-me muito. Cada vez mais me interessa que haja uma estética limpa, clara, bonita, optimista, firme e transparente.

– Como explica o efeito da psicologia no seu trabalho?

S.A. – Quando faço os desenhos para um barco, um cenário, uma serigrafia, pinto um quadro, um desenho, há sempre um jogo de psicologia para captar o público, prendê-lo e mantê-lo um pouco inquieto. Quero deixar as pessoas atentas, com vida, em estado de alerta, quero-as felizes, mas não as quero sossegadas no marasmo. É isso que me interessa quando pinto, essa ligação com o público, estar em sintonia.

– Quando pinta está a dialogar?

S.A. – É uma expressão de sentimentos, um diálogo com quem vai querer ver o meu trabalho. Existe uma intencionalidade. Nada é feito ao acaso. O traço é um acaso, mas depois o conjunto e a atitude são intencionais.

– O artista precisa do ‘marchand’ e das galerias de arte para se promover. Como lida com a parte comercial?

S.A. – É uma situação muito dúbia na vida de um artista que, por um lado, tem o lado da arte pela beleza e depois este lado de ser puxado à terra e agora “vamos trocar isto por patacas”. Não bate certo, uma pessoa faz um trabalho de uma interioridade tão forte e depois vamos trocar isto por dinheiro. Penso que os ‘marchands’ são importantes se tiverem empenho em respeitar o artista e o divulgarem. Porque quando um artista – como eu – está oito horas por dia a trabalhar não tem tempo nem físico nem mental para fazer uma ligação ao mundo em geral. Claro que, com o tempo, já fiz muitas exposições, conheci muita gente. O ‘marchand’ é necessário principalmente nos primeiros anos de vida do artista. É um mal necessário ou um bem necessário, se o ‘marchand’ for correcto e tiver empenho – se for só para explorar o artista é uma chatice. Mas, infelizmente, é por aí que se tem de começar. É preciso haver uma janela para o mundo.

– Hoje é mais fácil ou mais difícil para um artista singrar?

S.A. – Hoje existem muitas escolas, as escolas em arte podem dar umas bases, a ligação ao meio, e podem dar abertura para cada um fazer as suas leituras. Hoje há muito mais gente, mais competição, as pessoas arriscam menos no seu trabalho. Mas há sempre inovação e pessoas que fazem coisas à sua maneira. Há lugar para tudo a nível cultural. Penso que esta é uma das conquistas dos tempos mais recentes, que é a liberdade que cada pessoa tem de encontrar as suas afinidades, porque já nada é novo, já tudo foi criado. Mas, é igualmente difícil singrar. Acaba por depender da conjugação, que é a personalidade, o trabalho, o afinco, a disciplina, ter confiança e acreditar no seu trabalho. Claro que se tem inseguranças. O Picasso, por vezes, levava dias no quarto fechado. O Matisse era um homem que tinha crises de pânico. Eu serei uma mulher invulgarmente insegura e medrosa. Mas tenho como que um fio condutor, uma corda firme, espiritual, com certeza, que me faz acreditar que compensa estar vivo porque tenho este caminho.

– Onde está o seu mercado?

S.A. – Andei até muito tarde fechada no meu atelier, sem ligar ao estrangeiro. Tenho um mercado grande em Portugal. Comecei agora a sentir necessidade de novos horizontes. Como os tempos estão mais tristes e eu não sou adepta da infelicidade, é-me importante ver outros horizontes, outros sítios onde as pessoas estão noutros estádios económicos, onde há uma maior dinâmica. Comecei a sentir necessidade de alargar. Até porque a maioria do meu mercado já lá está. Mas, para além de vender, interessa-me ver o mundo. Preciso de reciclagem visual. O ano passado estive no México. Agora estou aqui pela primeira vez e é tudo novo.

– Que expectativas tem em relação a Macau?

S.A. – Tinha uma curiosidade enorme. Há um lado de imagens – na minha pintura não são imediatas. Mas dentro de mim há um mundo, um imaginário, que faz parte da minha infância, que para mim é atraente ir ver e conhecer. Quando cheguei a Macau foi um reconhecimento de imagens, de conversas, de pessoas – muitas pessoas que conheço, viveram cá ou estão cá. Faz parte de uma vida que já conhecia e obviamente faz parte da ligação com o Oriente que não conhecia fisicamente.

– Vai deixar-se influenciar por Macau nestas três semanas?

S.A. – Estou sensível a todas as influências, desde as pessoas, à paisagem ao clima em si, este lado mais húmido que há no ar, há toda uma série de coisas que pretendo captar e transformar em pintura.

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