Macau tem duas lojas

Com a institucionalização formal da Loja Luz do Oriente, Macau passou a ser o único espaço da lusofonia com duas lojas maçónicas fora de Portugal. É mais um capítulo de uma longa história, ainda por fazer. E que também passa por Hong Kong.

João Paulo Meneses

São duas as lojas maçónicas de raiz portuguesa que existem em Macau, embora apenas uma tenha publicitado a sua existência. A que formalmente não ‘existe’ é, contudo, a mais antiga e que reunirá personalidades mais conhecidas da comunidade portuguesa e até da chinesa.

Diz-se ‘reunirá’ porque a maçonaria é conhecida pela sua discrição e este trabalho não foge à regra – vários nomes são habitualmente dados como pertencendo à loja do Grande Oriente Lusitano (GOL) em Macau, mas sobre nenhum há certeza. Os seus responsáveis explicam essa discrição como estando “associada a uma prática tradicional de grande respeito por opções íntimas individuais dos seus membros” e que só os próprios podem divulgar essa ligação.

Os pedidos de informação enviados pelo PONTO FINAL para a sede do GOL não mereceram atenção e uma promessa de resposta, obtida já em Macau, foi nos últimos dois meses múltiplas vezes adiada, até se tornar impossível continuar a esperar.

Ainda assim, o PONTO FINAL está em condições de confirmar a existência de duas lojas, uma pertencendo à Maçonaria dita irregular (o GOL), e outra, muito mais recente, chamada Luz do Oriente, filiada na Grande Loja Legal de Portugal (GLLP).

A Maçonaria tem tradições históricas em Macau (ver texto nestas páginas), mas essa tradição terá sido quebrada entre o final da II Guerra e o 25 de Abril de 1974; só com o regresso da democracia a Portugal e um novo interesse por Macau, no final da década de 70 desse século, é que se assistiu à reabertura de uma Loja maçónica no então Território.

Muito ligada a elementos do Partido Socialista (como Jorge Coelho, António Vitorino, Carlos Monjardino, Júlio Meirinhos ou Vitalino Canas, todos referidos num recente trabalho do Diário de Notícias), sabe-se que a Loja terá sido criada durante a administração Melancia por alguns desses quadros socialistas a trabalhar em Macau. Terá sido inicialmente formada quer por expatriados, quer por macaenses (que estudaram em Portugal), mas com o regresso de grande parte dos quadros socialistas aos governos do PS, a Loja terá ficado reduzida em números a umas 15/20 pessoas.

Se a sua actividade perdeu algum fôlego à medida que se aproximava a transição, a verdade é que nunca cessou a presença. Já em tempos de RAEM, continua a reunir-se periodicamente, mantendo o elo com o GOL em Lisboa.

Macau é, assim, o único espaço da lusofonia fora de Portugal onde existem duas lojas maçónicas, cada uma com origens bem diferentes e, como mandam ‘as regras’, sem ligações entre si – ainda que no caso de Macau, até pela dimensão da comunidade portuguesa, haja algumas singularidades, como se viu recentemente, aquando da visita à RAEM do líder máximo da Grande Loja Legal de Portugal, José Moreno, que foi visto com uma das figuras mais destacadas da loja “irregular”. Mas várias fontes confirmaram que não há contactos entre as partes, apenas ligações de carácter pessoal.

Mais duas Lojas?

Características bastante diferentes tem a outra Loja, recentemente criada. Formalmente ligada à GLLP, divulga as suas actividades através da Internet e o seu porta-voz até deixou um contacto de e-mail para que os leitores do PONTO FINAL possam saber mais sobre o que fazem: “Teremos muito gosto em esclarecer quem queira saber mais da Maçonaria e dos nossos princípios e valores. Basta enviar-nos um email para luzdooriente.macau@gmail.com”.

Durante muito tempo estiveram em ‘instalação’, atraso explicado porque a “instalação de uma Loja Maçónica depende das condições locais”. “As nossas dificuldades tiveram que ver com a ausência de um Templo em Macau e a distância geográfica de Portugal, o que impôs que os membros do Triângulo, constituído em 2007, tivessem que viajar para Lisboa para serem iniciados e depois subidos de Grau. Isso atrasou um processo que normalmente leva um ano.”

A Luz do Oriente tem, segundo este responsável, várias dezenas de pessoas associadas, não apenas portugueses: “Tem uma maioria de ‘obreiros’ portugueses, mas também americanos, brasileiros, de países africanos e de língua materna inglesa. Terá membros chineses, em breve”.

Os membros da Luz do Oriente são os primeiros a assumirem as diferenças com a outra Loja de Macau, ainda que, na origem, tenha havido um percurso comum, como explica este elemento: “A Maçonaria portuguesa tem essa dupla via: a via liberal ou agnóstica representada pelo Grande Oriente Lusitano, que se designa por ‘irregular’, e a via tradicional e deista, representada pela Grande Loja Legal de Portugal. São visões diferentes sobre o que chamamos a Arte Real, baseadas em pressupostos diferentes. Há 20 anos, precisamente, um grupo de Mestres do GOL saiu dali para restituir a Portugal o caminho da tradição e dos valores da Maçonaria Universal perdidos em 1908, quando o Grande Oriente rejeitou a crença no Grande Arquitecto do Universo. Daí resultou a Grande Loja Regular de Portugal, depois Grande Loja Legal de Portugal”.

“Gama”, como assina o responsável da Luz do Oriente que falou ao PONTO FINAL, afirma ainda que há “respeito” relativamente à outra Loja em Macau, “mas nada temos que ver com a forma como vêem a Maçonaria”. “A via que escolhemos é mais interior, espiritual, litúrgica, a deles mais relacional e ligada à intervenção política e social. É nosso objectivo ter mais duas Lojas a funcionar dentro de alguns anos.”

As duas maiores obediências portuguesas não se reconhecem uma à outra, mas respeitam-se.

Diferente de Hong Kong

Onde a Loja do GOL e a do GLLP convergem é na discrição relativamente aos seus elementos, ao contrário do que acontece, por exemplo, com diversas lojas de Hong Kong, que até colocam nomes e fotografias dos seus membros na Internet. “Gama” explica que “a Maçonaria é legal em Inglaterra e no mundo anglo-saxónico há 240 anos”. “Nunca foi perseguida, vive de portas abertas. A Maçonaria portuguesa foi perseguida em vários períodos da nossa história, os seus membros torturados, presos ou queimados nas fogueiras da Inquisição. No Estado Novo, a Maçonaria voltou a ser perseguida e os Maçons forçados à clandestinidade e ao exílio. A ditadura fez crer que os Maçons eram contra a Igreja Católica e dados a práticas satânicas, o que é uma intrujice. Mas essa suspeição subsistiu depois de 1974, e a ignorância e a má fé ajudaram à desconfiança. Um dos nossos landmarks é que só o próprio se pode assumir Maçom; ninguém tem o direito de dizer que ele é. As Maçonarias de Hong Kong e Macau reflectem esta distinta tradição.”

As diferenças face a Hong Kong não ficam por aqui. “A Luz do Oriente não tem tido relações institucionais com as lojas de Hong Kong. Os dois territórios desenvolveram-se de forma independente e em competição, quer no tempo das administrações europeias, quer já sob soberania chinesa. As lojas de Hong Kong dependem das Grandes Lojas de Inglaterra, da Escócia e da Irlanda, a nossa depende da Grande Loja Legal de Portugal. Temos jurisdições independentes e queremos continuar assim. Recebemos visitantes de vários pontos da Ásia; acredito que teremos também de Hong Kong.”

Ser Maçom hoje

Uma das questões postas a “Gama” tem que ver com o próprio sentido de ser Maçom hoje, em que parece haver menos espaço para organizações pouco transparentes.

O porta-voz da Luz do Oriente admite algumas dificuldades: “A Maçonaria é uma organização viva que evolui ao longo das décadas e dos séculos. Hoje procura o seu papel na sociedade da informação e da Internet e que não pode ser o mesmo de décadas passadas. Como Ordem Tradicional, tem dificuldades em adaptar-se e abrir-se a esse mundo novo, mas acredito que com tempo irá consegui-lo. Há uma enorme ignorância associada ao que fazemos e quem somos e não se pode dizer que isso aconteça sempre por culpa dos outros”.

E o que fazem afinal? Reúnem com assiduidade, iniciam profanos e preparam-nos para “os graus superiores do Rito Escocês Antigo e Aceite”. “O que nos diferencia de outros, designadamente o de York, maioritário no mundo anglo-saxónico, é a exigência do estudo, da investigação e do trabalho teórico associado à interpretação dos símbolos, à história da Maçonaria e das alegorias que estruturam a nossa visão sobre Deus, a vida e o mundo, para que se possa progredir. A maçonaria é uma carreira não diferente das que existem no mundo profano, fundando-se exclusivamente no mérito.”

Quanto aos objectivos que perseguem, “Gama” fala em “aperfeiçoamento moral e ético dos homens que nos procuram ou que são propostos pelos membros”. “Costumamos dizer que tornamos os homens bons melhores, mas nada podemos fazer pelos homens maus”, refere.

Para os que apontam críticas à instituição, este elemento da Luz do Oriente diz que “a Maçonaria é uma escola de virtude, de valores, de promoção da dignidade humana e do respeito, valores que estão em crise no mundo”. Exemplos? “Apoiamos obras sociais já existentes na comunidade ou criamo-las. A Maçonaria, no mundo anglo-saxónico, na Europa, na América Latina ou no Brasil tem uma acção de solidariedade notável e faz generosos contributos para essas obras. À nossa escala daremos também o nosso contributo solidário à sociedade de Macau, provavelmente a uma obra social.”

O testemunho de José António Barreiros

“Estive nas duas maçonarias, se assim se pode simplificar: primeiro no Grande Oriente Lusitano (GOL), depois na Grande Loja Regular de Portugal (GLRP). Julgava a maçonaria um clube filosófico, uma sociedade filantrópica. A certa altura, no GOL, começou a desenhar-se uma profanização, uma lógica ostensiva de tomada de poder, a tentar-se tornar a maçonaria num contraponto à Opus Dei, o que achei muito perigoso e com o que não tinha nada a ver. Rompi com o GOL porque em Macau vi onde estavam, cá e lá, muitos que se diziam maçons e de uma agremiação de `bons costumes’. Depois, surgiu a GLRP, com maior incidência nos valores filosóficos – mais ritualizada, aparentemente mais apta a ser uma via iniciática de enriquecimento simbólico. Mas os problemas vieram também ali na forma de escândalos públicos. Mas, note, há gente boa, generosa e séria na maçonaria, pessoas que tentam vivê-la como uma mística laica, ou como uma forma de esoterismo gnóstico, como um instrumento de socorro social, a par de outros para quem aquilo é uma central de interesses, empregos e negócios.”

Excerto de uma entrevista do advogado José António Barreiros, antigo secretário-adjunto para a Administração e Justiça no tempo de Carlos Melancia, ao jornal Sol, de 2009.

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