O homem que amou as mulheres

Advogado, professor, escritor. Escritor mais que tudo. A vida dele dava um livro. Deu vários. Henrique de Senna Fernandes tinha 86 anos e partiu. Deixa a memória de uma Macau que já não existe. Com muito amor.

Isabel Castro

Há quem classifique a sua escrita como queirosiana e a etiqueta não vai mal, mas não chega. Nem se juntarmos o camiliano que também foi. Henrique de Senna Fernandes tinha em Eça e Castelo Branco grandes referências e na escrita não faltam hipalages e sinestesias, nem tampouco uma vasta adjectivação.

Mas a escrita do homem que ontem nos deixou era mais, porque era única. As figuras de estilo são sempre redutoras, tiques de académicos que encontram duplos sentidos onde não os há. Senna Fernandes teve outras preocupações com as palavras, outros prazeres além do formalismo. Romanceou Macau até ao limite do romantismo, amou mulheres com a prosa que a imaginação e a vida lhe deram. Amou Macau e o que já não resta dela – sem metáforas.

Nascido a 15 de Outubro de 1923, Henrique era o segundo de uma dúzia de filhos do casal Edmundo José e Maria Luíza de Senna Fernandes. De miúdo tinha muitas recordações, mais despertas nos seus últimos tempos de contador de histórias, numa altura em que hesitava em escrever. Histórias como a do primeiro ovo da galinha, aquele que saía da capoeira directamente para o pequeno-almoço do irmão mais velho, o primogénito da família. “Nunca senti o sabor daquele ovo”, ria-se Henrique do episódio que, durante os anos dourados da infância, se repetia todas as manhãs. Histórias como a da Avó Rica, imponente e distante aos olhos de um miúdo que lhe dava pela cintura. A avó que era rica por ser abastada e ter muitas casas, muito tudo, mas que um dia caiu nas escadas da casa grande, sob o olhar atento de um Henrique que percebeu, nesse momento, que todos somos falíveis.

Dos primeiros tempos, recordava ainda as festas, os carros, a Macau que imaginamos a preto e branco, senhoras bem vestidas e cavalheiros elegantes de chapéu. Na casa com vista para a Praia Grande – que ainda era grande e ainda era praia, “o mar chegava aqui” – só se falava português. O cantonês era língua de rua, aprendido às escondidas com as empregadas para se conseguir perceber o resto do mundo, a Macau para além da cidade cristã.

Contava que herdou a alegria da mãe Maria Luíza e que com o pai ia ao cinema e à livraria, que Edmundo José gostava de livros e de contar histórias. Explicava ainda que conheceu dois Edmundos: um até aos 14 anos, outro depois. Os 14 anos de Henrique foram um momento decisivo da vida – e foi aí que começou a perder a “arrogância” que dizia ter. “Eu era muito petulante”, soltava com um ‘muito’ prolongado e uma gargalhada, a atestar que a idade nos pode ensinar a ceder. Aos 14 anos, os azares nos negócios do pai fizeram com que o quotidiano passasse a ser outro e o adolescente Henrique aprendeu que a vida não se resumia à Praia Grande. Os anos da guerra chegaram e, aí sim, conheceu todo um novo mundo. Incluindo o da escrita.

Do amor em tempo de guerra

“A guerra começou na Europa em 1939 mas chegou ao Oriente em 41, quando os japoneses atacaram Hong Kong. O meu pai perdeu a fortuna toda que tinha, ficámos praticamente na miséria. Mas uma coisa foi legada pelos nossos antepassados: um imenso orgulho, que vem da educação que recebi, o orgulho de esconder a miséria e o sofrimento.”

Esse levantar de cabeça fez-se através da escrita, engenho que tinha descoberto pouco tempo antes da guerra começar e de Macau se transformar num porto de abrigo de gente que fugia à fome e aos japoneses. Henrique percebeu que, no papel, construía o mundo que queria – e que a guerra lhe proibiu. Pelas suas contas, escreveu quase uma dúzia de livros nesses tempos, que correspondem ao início da idade adulta. “Tinha como leitoras as minhas irmãs.” Dessa época não sobram vestígios. Mas já lá vamos.

Antes importa recordar como se deu a descoberta da escrita. A da leitura foi por via do pai Edmundo e de um professor da escola primária, o do quinto ano (um ano especial para quem queria ir para o liceu com bases mais sólidas e que acabou por mudar toda a sua vida). Foi este homem “muito esquisito, que tinha estudado para ser jesuíta, todo ele era jesuíta”, que o chateava com os verbos e a gramática, que lhe disse “‘tens ideias, continua a escrever’”. Henrique continuou, mas mais com a leitura do que com a construção de palavras. Tinha 11 ou 12 anos.

Até que um dia – e aqui temos o amor, num cenário de 1941 – se cruzou com uma rapariga nas escadas do liceu. Ela olhou para ele, um olhar rápido, “mas tão perturbador” – e a recordação era vivida como se o momento não tivesse passado e o liceu ainda existisse, cabeça apoiada no queixo e ar sonhador. “Mas este parvo não fez mais nada, não soube actuar.” O jovem Senna Fernandes apaixonou-se pela rapariga que “era tão bonita, tão realmente bonita, uma das mulheres mais bonitas de Macau”, mas como o sentimento lhe tolheu a voz, chegou a casa e escreveu. Em papel branco almaço, a lápis, de uma só vez. “Escrevi ‘capítulo primeiro’. E fiz uma história, o meu primeiro volume.”

O primeiro volume e os outros que se seguiram, os tais que tinham as irmãs como leitoras, viajaram num baú para Portugal quando a guerra permitiu que Henrique partisse para Coimbra. Já advogado e de regresso a Macau, a água que apagou um incêndio num edifício da Almeida Ribeiro entrou no seu escritório e transformou os escritos em papel para o lixo. Senna Fernandes lamentava a perda, mas não muito, homem com mais de 80 anos e uma dose significativa de pudor pueril.

Dos livros

“São os pequenos desencontros que decidem a vida das pessoas”, dizia. Na vida de Henrique houve vários – o desencontro com Portugal, motivado pela chegada da guerra que podia ter evitado, não fosse aquele quinto ano da escola primária que adiou o fim do liceu. O desencontro nas escadas com a rapariga que “era tão bonita, tão realmente bonita”.

Há ainda o desencontro com uma outra mulher, que conheceu em Cantão, tinha então 15 anos e os amores eram platónicos. Uma mulher mais velha de quem nunca se esqueceu, 70 anos volvidos, outros amores passados. “Era linda. Um dia o pai vendeu-a. Foi-se embora.” Vivia-se a guerra que tem estranhas necessidades. Já com Coimbra na bagagem e uma nova vida, um novo desencontro, com a mesma mulher. “Encontrei-a na rua em Macau. Combinámos conversar à porta do cinema, no dia seguinte. Queria saber o que lhe tinha acontecido. Não apareceu.”

Mas na vida de Henrique houve passos que não foram divergentes. Apaixonou-se “como um tonto”, casou, teve filhos. Pelo meio, na memória e num imaginário muito seu, encontrou as mulheres certas para os seus livros. Sempre bonitas, “tão realmente” bonitas. Até mesmo Victorina Vidal, a mulher que não correspondia aos padrões de beleza da época em que viveu, e que foi enfiada em “Amor e Dedinhos de Pé”. O encanto de Victorina era outro: o de saber esperar pelo amor.

Victorina é ressuscitada já os meados do século XX iam longe – Senna Fernandes é um autor que publica tarde. “A Trança Feiticeira” e “Amor e Dedinhos de Pé” fazem a obra de Senna Fernandes em formato romance. Depois há os contos – os de Nam Van, os de Macau e também os de Mong Há. A obra não foge à memória: há uma componente auto-biográfica, “mas muito romanceada”, nos livros de Henrique.

Os passeios com o pai inspiraram histórias como a de A-Chan, a tancareira chinesa que se apaixonou e teve um filho excessivamente louro. “A A-Chan é, em parte, fruto da imaginação, mas fisicamente existiu, porque eu vi-a”, explicava. Em “A Trança Feiticeira”, A-Leng, que com Adozindo vive um amor proibido, também era real e, claro está, “era tão bonita”. O homem que encanta A-Leng “é uma mistura de muitas pessoas, com traços de uns e de outros”. E Victorina Vidal? “Existiu e ela própria sabia que era ela,” dizia com uma gargalhada.

A verdadeira carga autobiográfica, explicava Senna Fernandes, tem que ver com “a forma como se sentem as coisas” que surgem nos livros. Adozindo, o jovem que, por amor, perde a vida confortável que tinha, é a personagem com mais Senna Fernandes dentro dela. “Pela sua desgraça, porque eu senti muitas vezes o que é a pobreza.”

Adozindo passou das páginas para o cinema pela mão dos irmãos Kai. Victorina Vidal teve o seu amor e dedinhos de pé na tela por Luís Rocha, com banda sonora do maestro Oswaldo Veiga Jardim. As obras que deram origem aos filmes estão publicadas no Brasil, esgotadas em Macau, ausentes do mercado livreiro português. Foram traduzidas para inglês e chinês. Na terra do escritor, aguarda-se a reedição prometida, na língua original.

Das ausências

Voltamos ao tempo em que Henrique escrevia para as irmãs. Ainda antes dos seus oito anos em Portugal a estudar Direito, um curso “interminável”, Senna Fernandes foi professor primário. No regresso de Coimbra, deu aulas de História. Foi director da Biblioteca Nacional durante quase 20 anos e conviveu muito com os livros dos outros. Teve uma passagem pelo mundo da política, da qual não se arrependeu mas que, nos últimos anos de vida, analisava de forma muito crítica. Montou escritório mas não foi advogado de fazer fortuna.

Senna Fernandes deixa duas obras por publicar – que não deverá ter concluído: “O Pai das Orquídeas” e “Os Filhos das Nuvens e da Chuva”. Acessíveis nos arquivos da biblioteca estão os escritos para jornais. Entre 1982 e 1983, escreveu memórias no Jornal de Macau. Já em 2004, publicou no PONTO FINAL “A Noite Desceu em Dezembro”.

Há histórias que Henrique queria ter contado mas não teve tempo. São sempre histórias de amor, de diferenças sociais e preconceitos, em que amores vividos entre etnias distintas “eram complicados” – mas que terminavam em entendimento, mesmo com dor. Histórias como a de Maria Marinheiro, filha de um homem do mar que abandonou a descendente, “bailarina de um cabaret que existiu no Porto Interior, chamado ‘O Gato Preto’, uma rapariga linda, uma chinesa com traços europeus”.

Sem ser um escritor com um ritmo de publicação regular, cadenciado, Senna Fernandes garantiu um espaço na chamada literatura lusófona, que o destaca por ser um autor único num contexto como o de Macau. Escreveu histórias que mais ninguém escreveu, com a sua forma de ser macaense: de amar Macau como a mátria, e Portugal como a pátria.

De ambos levou desmotivações – mas não mágoas. Da mátria, o não saber ter crescido, de se ter perdido e resultado em hibridez. “Não há proporção entre esta nesga de terra e as gigantescas construções”, partilhou com Lúcia Lemos e Yao Jinming, que em 2004 publicaram “Fragmentos”, uma fotobiografia do escritor. Da pátria, a ausência à portuguesa – o esquecimento que não merecem os homens que, à distância de um mundo, amam um país só porque lhes ensinaram que é seu.

“Uma das coisas que me quebrou o ritmo foi quando pensei em concorrer com ‘Amor e Dedinhos de Pé’ a um prémio em Portugal”, contou em 2007, sobre um episódio ocorrido uma década antes. “Numa conversa em Lisboa alguém me disse que dificilmente poderia ser considerado um escritor português. Sei que quem o disse não teve a mínima intenção de me ofender, foi com boa fé.” Riu-se do comentário, mas não concorreu. Do episódio ficou uma certeza – poder dizer “sim, sou um escritor de Macau”.

Da redenção

Houve tempos em que, na realidade, o que Henrique queria era mesmo ter sido médico. Mas exerceu advocacia até tarde, de 1953 até quase ontem, até ter ficado sem voz.

Já doente, há coisa de três anos, continuava a ir ao trabalho – um ritual sagrado que o levava da casa na Praia Grande, onde voltou a viver, para o lado oposto da mesma avenida. Num passo certo e lento de quem já não tem de correr nem de se justificar, no meio de uma cidade que, desconhecendo, nunca deixou de ser sua, apesar de ter perdido a escala humana. Foi nestes dois pontos da Praia Grande que, entre 2007 e 2008, recordou as histórias que se contam neste texto – que não termina sem o amor.

Era às mulheres que dava mais atenção nos seus romances – o desafio literário de imaginar o outro diferente de nós. E, em havendo mulheres, ali estava o amor, sentimento óbvio numa geração que sonhava com o acto de beijar, beijando às escondidas. Os amores eram “sempre proibidos”.

“O amor e o sexo têm uma influência enorme na vida de uma pessoa.” De duas maneiras, entendia: “Praticamos erros imensos; outras vezes é a redenção”. Nos seus livros encontramos ambos – na vida também.

Senna Fernandes entendia que os romances não podiam terminar em desilusão. Com erros, mas redenção. E o mesmo fez com a sua vida, até ao fim. Voltou a encontrar aquela mulher que era “realmente bonita”, aquela dos 17 anos no liceu, iam ambos já perto dos 80. Conversaram, ele percebeu “perfeitamente os erros” e, “se calhar, ela também”. E é aqui que Henrique, com orgulho nas suas mãos que se recusaram a envelhecer e falavam tanto quanto as suas palavras, termina o livro. Aquele que era só dele. Sem metáforas, hipalages ou sinestesias.

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