Faltou a China à palavra dada?

Mota Pinto terá recebido garantias de que Pequim não tocaria na questão de Macau “durante uma geração”

É uma das últimas dúvidas que está ainda por esclarecer no processo que há 30 anos culminou no restabelecimento das relações entre Lisboa e Pequim. Um jornal da época disse que o governo chinês se comprometeu a não levantar a questão de Macau “durante uma geração”, o que, levado à letra, teria adiado a transferência de poderes para bem depois do virar do século. O problema é que não há forma de desfazer a dúvida. Os documentos do então primeiro-ministro Mota Pinto, entretanto falecido, estão em poder da família. E ninguém sabe o que está lá escrito.

Ricardo Pinto

Em vésperas do restabelecimento das relações diplomáticas entre Lisboa e Pequim, no final da década de 70, o desconforto estava todo do lado do governo português. Nas negociações prévias conduzidas pelas diplomacias dos dois países, tinha fica acordado relativamente a Macau que a China levantaria a questão do futuro do território quando entendesse que o momento era mais indicado, compromisso lavrado em acta que se manteve secreta – sem nunca ter sido classificada como tal – até ao ano passado, altura em que o investigador Moisés da Silva Fernandes, presidente do Instituto Confúcio em Portugal, deu a conhecer o seu conteúdo num livro sobre a “Confluência de interesses – Macau nas relações luso-chinesas (1945-2005).
O desconforto do governo português era compreensível. A questão de Macau andava há vários anos – praticamente desde a Revolução do 25 de Abril – a ser tratada nos corredores do poder em Lisboa de uma forma voluntarista mas muito pouco coerente. E, por uma razão ou por outra, os negociadores acabaram por ignorar o que estava determinado na Constituição da República Portuguesa, que impunha a auscultação da Assembleia da República e também da Assembleia Legislativa de Macau antes que alguma decisão sobre o futuro do território fosse tomada.
Esta lacuna grave, denunciou-a antes de ninguém o dirigente democrata-cristão Basílio Horta quando, em 1978, na qualidade de ministro do Comércio do governo de coligação PS-CDS, vetou em Conselho de Ministros o acordo entretanto negociado em Paris pelo embaixador Coimbra Martins com o seu homólogo chinês. Basílio Horta era dirigente destacado de um partido com quem a Associação de Defesa dos Interesses de Macau (APIM), liderada por Carlos Assumpção, mantinha uma relação de estreita colaboração politica, e sabia por isso que as negociações entre Lisboa e Pequim eram olhadas com muita desconfiança a partir de Macau, por nenhum representante do território ter sido ouvido ou chamado a participar nas conversações.
Segundo Moisés Fernandes, que esta noite vai debater o assunto num encontro promovido pela Associação da Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM), no Clube Militar, a preocupação do governo de Lisboa em manter secretas as negociações com a China acerca de Macau estava de tal modo presente que a versão chinesa da acta final foi entregue para verificação a um sinólogo francês sediado em Paris, por receio que de outra forma chegasse ao conhecimento da comunidade macaense e dos portugueses radicados no território.
A recusa de Basílio Horta em aprovar o acordo levou a que o restabelecimento das relações entre Lisboa e Pequim sofresse um atraso significativo, que não foi no entanto o primeiro. Já antes a crise à volta da sucessão de Mao Zedong, que se arrastou entre 1976 e 1977 (quando foi detido o Bando dos Quatro), tinha impedido que um processo político-diplomático que se tinha como relativamente simples produzisse resultados. Aos três ministros chineses dos negócios estrangeiros que passaram por aquela pasta ao longo do ano de 1977, seguiram-se outros tantos no Palácio das Necessidades, quando ao executivo PS-CDS se seguiram os governos de iniciativa presidencial.
Mota Pinto, o chefe do segundo desses governos de inspiração eanista, tentou convencer Pequim a reabrir a negociação relativa a Macau, lembra Moisés Fernandes, tendo para isso enviado a Paris o embaixador Freitas Cruz, numa missão que se propunha reescrever a acta final do acordo entre os dois países, introduzindo-lhe garantias quanto ao futuro da comunidade macaense e dos portugueses radicados no território.
Uma vez falhado esse objectivo, por ter esbarrado na intransigência chinesa quanto a uma eventual reabertura de um acordo que tinham como definitivo, começaram a surgir na imprensa portuguesa artigos de opinião, aparentemente com base em fugas de informação do gabinete do primeiro-ministro, que alertavam a opinião pública portuguesa para o desconforto que Mota Pinto sentia relativamente a todo o processo.
É então que um artigo do semanário O Jornal, entretanto extinto, vem dizer que a diplomacia chinesa não tinha aceite introduzir alterações à acta sobre a questão de Macau, mas tinha acabado por comprometer-se, oralmente, em não levantar junto do governo português o problema do futuro do território no período de “uma geração”.
“Se o fez, faltou a essa promessa, porque a uma geração correspondem regra geral 25 anos, e Pequim acabou por suscitar a discussão da questão de Macau muito antes do decurso desse prazo”, diz Moisés Fernandes.
O investigador, que é hoje a voz mais autorizada no estudo das relações entre Lisboa e Pequim na segunda metade do século XX, lamenta que não tenha sido ainda possível comprovar se essa promessa foi mesmo feita pelos diplomatas chineses, ou se foi argumento encontrado à pressa pelo gabinete de Mota Pinto para explicar a sua adesão à acta sobre o futuro de Macau, quando antes lhe tinha merecido todo o tipo de reservas.
“Infelizmente, os primeiros-ministros deste país (Portugal) levam para casa todos os papéis, quando deviam ficar entregues ao gabinete do Conselho de Ministros”, desabafa o investigador. “Agora, para esclarecer essas e muitas outras questões desse tempo, está toda a gente dependente do que a família de Mota Pinto queira ceder do seu espólio, se é que ainda existe”.
Enquanto a prova documental permanecer em segredo, o processo que conduziu à resolução do problema de Macau e, em simultâneo, ao restabelecimento das relações diplomáticas entre Lisboa e Pequim, continuará a alimentar uma dúvida fundamental sobre o destino traçado para o território: afinal 1999 foi uma data negociada ou imposta?

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