“Ainda existe pirataria à volta de Macau”

Robert J. Antony, professor da Universidade de Macau, é um dos mais importantes investigadores do fenómeno da pirataria em todo o mundo. E diz haver conhecimento da existência desse tipo de actividade à volta de Macau ainda nos dias que correm.

Ricardo Pinto

Professor doutorado em História Chinesa pela Universidade do Havai e actualmente a leccionar na Universidade de Macau, como professor associado do Departamento de História, Robert J Antony é um dos autores que mais trabalhos sobre pirataria tem publicado nos últimos anos. Entre as suas obras mais recentes contam-se “Pirates in the Age of Sail” (2007) e “Like Froth Floating on the Sea: The World of Pirates and Seafarers in Late Imperial South China” (2003), estando já a trabalhar num projecto relacionado com Macau e áreas circundantes no séc. XX, a que atribuiu o título provisório de “Evil Monsters of the Sea”. Numa entrevista que com ele tivemos recentemente, deu-nos a sua opinião sobre a importância da pirataria para Macau e as suas gentes.

– O que explica esta nova vaga de pirataria e por que razão a zona agora mais sensível passou a ser a costa oriental de África e já não o Sudeste Asiático?
Robert J. Antony – Como historiador, tendo a analisar as questões em termos de ciclos. Este é mais um ciclo e há razões politicas e económicas que o explicam, entre outras. A região do Sudeste Asiático continua a ser muito perigosa, em especial na zona do estreito de Malaca e ao longo de toda a costa da Malásia e do arquipélago indonésio. Mas está mais calma nos últimos anos, enquanto que na região do Corno de África, ao largo da Somália e junto ao golfo de Aden, a pirataria é hoje muito intensa. Aqui na Ásia, uma maior cooperação entre os países da região ajudou a estabilizar a situação, como já tinha acontecido também no séc. XIX, quando as marinhas de guerra das grandes potencias se uniram para combater os piratas que infestavam a zona. Mas sempre que há períodos de crise económica, como aquele a que se assiste hoje, acaba normalmente por verificar-se um recrudescimento das acções de pirataria. Foi também isso que pudemos constatar no final dos anos 90, na sequência da crise financeira asiática.

– A própria fundação de Macau, enquanto entreposto comercial dos portugueses no sul da China a partir do séc. XVI, é vulgarmente explicada como uma recompensa pela ajuda no combate aos piratas, embora seja uma tese muito controvertida entre os historiadores que estudam esta questão. Qual é a sua posição nesse debate?
Que nessa altura havia piratas nesta área, isso ninguém duvida; agora, até que ponto os portugueses ajudaram a suprimi-los, essa é que é a questão. Alguns historiadores e outros académicos acreditam nessa tese, outros dizem não haver provas que a sustentem. Pessoalmente, acho que os portugueses ajudaram de facto os chineses a verem-se livres dos piratas mas, ao mesmo tempo, muitos chineses viam como piratas os próprios portugueses, os holandeses, os espanhóis e outros. Eram, aos olhos deles, gente que chegava aqui ao Mar do Sul da China e que raptava crianças para as vender noutros locais como escravos. E há documentos que o comprovam. Por isso, acho que haverá alguma verdade nas duas teses.

– O que nos diz a emergência desses ciclos de pirataria sobre o desenvolvimento das sociedades?
Muito, na verdade. Esse é, aliás, um dos temas do novo livro em que estou a trabalhar. Acredito que existe uma relação muito íntima entre a pirataria e as sociedades que a enquadram. Basicamente, desde sempre tudo o que se foi passando ao longo da costa do Sul da China, e não apenas em termos de crime, teve algo a ver com a pirataria.

– Pode falar-se numa relação íntima entre pirataria e tríades?
Julgo que sim. Algumas vezes os piratas são eles próprios membros de tríades: fazem os juramentos e seguem todos os outros ritos típicos das tríades. Mas é mais comum grupos de piratas e tríades limitarem-se a cooperar entre eles, por exemplo em operações de contrabando e na troca de informação sobre os movimentos da polícia, a entrada de navios nos portos, etc.. As tríades controlam os mercados do interior e, por isso, são eles quem frequentemente ajuda os piratas a vender o produto das suas pilhagens. Mas a pirataria não tem só a ver com crime. Os piratas são ou foram importantes para o desenvolvimento de muitas pequenas economias ao longo da costa, especialmente em zonas que nunca foram tocadas pelos mecanismos normais de mercado. Nalguns casos, há mesmo relatos sobre piratas que roubam aos ricos para distribuírem pelos pobres.

– Alguma vez tiveram motivações políticas, como aconteceu com as tríades?
Bom, na minha opinião as tríades nunca foram sociedades de orientação fundamentalmente política. Os piratas tinham por hábito, sobretudo no séc. XIX, atribuir-se títulos pomposos, como o de Rei Guerreiro Majestático que Pacifica os Mares, de um pirata de Fujian. Eram bastante pretensiosos, parece-me, e alguns diziam sim que era sua intenção derrubar o governo. Mas na maioria dos casos era só fanfarronice e não havia qualquer tipo de ideologia política por detrás disso.

– Os piratas tinham muito poder nos arredores de Macau durante o séc. XIX. Aliás, foi mesmo precisa a força combinada das armadas da China, Inglaterra e Portugal para lhe dar luta, não é verdade?
Os piratas chegaram mesmo a bloquear Macau e a cidade passou por momentos de desespero até chegar ajuda. Mas, por outro lado, os piratas usavam também Macau como ponto de encontro. Aqui podiam encontrar-se muitos piratas a vaguear, a gozar a vida como qualquer outro marinheiro. Na altura eles eram 50.000, em centenas de navios que atacavam todo o tipo de embarcações no mar, bem como cidades ao longo da costa. Quando os piratas finalmente se renderam em 1810, em troca de uma amnistia, o seu líder, Zhang Baosai, foi integrado na marinha imperial da dinastia Qing e enviado não se sabe bem para onde. E quando morreu, a sua viúva terá vindo viver para Macau durante algum tempo, antes de se mudar para Cantão. Há quem diga que alguns dos seus descendentes ainda hoje vivem na zona do Porto Interior.

– Outro episódio controverso na história de Macau foi o ataque contra os piratas em Coloane, em 1910. Qual é a sua posição sobre ele?
Bem, a versão oficial alega que a policia e o exército portugueses foram enviados para Coloane e conseguiram suprimir os piratas ao fim de algumas batalhas. Mas os residentes locais contam-nos uma história diferente: tratam este caso como um massacre de pescadores. A verdade deve estar algures a meio entre as duas versões. Não há qualquer dúvida de que havia piratas na vila de Coloane, mas provavelmente um bom número de pessoas inocentes foram também mortas durante os combates. E não podemos ignorar que havia uma ligação muito forte entre os piratas e a comunidade local. Muitos dos piratas não eram mais do que pescadores que se envolviam em actos de pirataria em regime de part-time. Aliás, essa ligação é também um dos pontos mais importantes da investigação que tenho em curso.

– Mais tarde no séc. XX apareceu então a poderosa e misteriosa Rainha dos Piratas de Macau, Lai Choi San.
Mais um tema que me encontro a estudar (risos). Quando vim para Macau, imaginei que houvesse muitas histórias sobre ela, mas a verdade é que não consigo encontrar ninguém que pareça saber muito sobre a vida dela. Neste momento assumo que ela existiu mesmo, mas estou também convencido de que não terá sido tão poderosa quanto se quis fazer crer. De acordo com o autor do livro ‘I Sailed with Chinese Pirates’, ela conseguiu monopolizar a indústria do pescado através da extorsão organizada. Isso em si mesmo nada tem de invulgar, como era também comum, entre as gentes do mar, ver mulheres desempenharem papeis habitualmente reservados aos homens. Na cultura chinesa, há um certo exotismo e até erotismo em torno das mulheres que fazem a sua vida no mar. Na perspectiva dos homens, são uma espécie de super-mulheres do ponto de vista sexual, de quem não se espera a obediência aos valores confucianos e familiares a que estão obrigadas as mulheres de terra. E é ainda verdade que os barcos que faziam as carreiras entre Macau e Hong Kong eram frequentemente assaltados por piratas, o que levava as companhias de navegação a usarem guardas armados com carabinas Winchester, fechados em jaulas instaladas nas pontes dos navios, para controlarem a situação sem que os piratas lhes pudessem chegar. Há muitas histórias que descrevem este tipo de incidentes, já mesmo nos anos 50. Por tudo isso, sim, assumo que ela era uma figura real.

– E já acabou a pirataria por aqui? De acordo com os dados das organizações internacionais, o último acto de pirataria registado nos arredores de Macau foi em 1994, quando um grupo de bandidos se apoderou de um jetfoil para ficar com as receitas dos casinos que eram ali transportadas.
Bom, diria que não acabou completamente, não. Presumo que a maior parte da pirataria actual envolva pequenos barcos de pesca e por isso não chega sequer a ser noticiada. Numa conferência em que participei, um professor da Universidade de Xiamen fez uma apresentação sobre a pirataria contemporânea e divulgou informação sensível sobre o nível de actividade que ainda se verifica no Mar do Sul da China; a maior parte é à volta da ilha de Hainão e ao longo da costa, mas ele disse que há também casos, normalmente pequenos roubos, que não são sequer denunciados no Delta do Rio das Pérolas. Portanto, sim, a pirataria ainda existe à volta de Macau.
O caso mais recente que tive oportunidade de estudar foi em 1998, quando um grupo de piratas chineses se apoderou de um cargueiro chamado Cheong Son. Havia 23 tripulantes a bordo e foram todos mortos, tendo sido presos a grandes peças metálicas e atirados pela borda fora. Mais tarde, os corpos foram sendo encontrados por pescadores, que os tinham presos às redes de pesca das suas embarcações. No ano 2000, 13 dos piratas viriam a ser executados na China e a investigação veio mostrar que estavam baseados nas imediações de Shantou e que tinham fortes ligações a outros grupos de piratas do Sudeste Asiático e a tríades de Hong Kong. Esse foi um ponto de viragem, porque o caso atraiu tanta má publicidade que o governo chinês começou finalmente a tentar desmantelar os bandos de piratas existentes nesta zona. Isso acabou por levar ao desaparecimento na região da chamada pirataria fantasma, em que os navios eram levados para enseadas escondidas, pintados de novo, rebaptizados e usados depois para outros fins. Tudo isso parece ter acabado por agora, mas não significa que não volte a acontecer no futuro.

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