“Éramos acusados de destruir os valores morais que sustentavam a juventude”

Proibiram-no de cantar, de exercer o sacerdócio e de dar aulas de Educação Moral. Durante os últimos anos que antecederam o 25 de Abril de 1974, Francisco Fanhais foi um dos músicos de intervenção mais vigiados do regime. Célebre por músicas como o “Vemos, ouvimos e lemos”, este católico progressista está em Macau para contar e cantar a sua história, participando nos festejos da revolução dos cravos organizados pela Casa de Portugal.

Luciana Leitão

Como é que se tornou um cantor de música de intervenção?
Francisco Fanhais – No princípio dos anos 60, ouvi o José Afonso a cantar pela primeira vez em disco. Um professor mostrou-me um pequeno disco com duas músicas que me ficaram na memória: “O menino do bairro negro” e “Os vampiros”. Percebi que ele usava a música, a poesia e o canto para denunciar as situações de injustiça que havia em Portugal. Como estávamos em plena ditadura e guerra colonial, apercebi-me de que, quem queria andar com os olhos abertos, não podia deixar de reagir a coisas como a PIDE, a censura, a falta de liberdade, os tribunais plenários, os jornais controlados.
– Zeca Afonso acabou por levá-lo ao “Zip Zip” …
F.F. – A certa altura, no fim dos anos 60, fui actuar no programa “Zip Zip” pela mão do José Afonso. Tinha começado a cantar há pouco tempo e, enquanto estava no Barreiro, o Zeca Afonso ouviu falar sobre um padre que cantava. Achou, por isso, interessante levar-me lá e apresentar-me ao Raul Solnado.
– Já nessa altura cantava música de intervenção ou era outro tipo de música?
F.F. – Até 1967, altura em que fui para o Barreiro, sempre tinha cantado músicas de temática mais religiosa e espiritualista. Só quando fui para o Barreiro, comecei a abrir os meus horizontes para outro tipo de companheiros, de temáticas e a sentir ao vivo os dramas sociais das pessoas. É preciso não esquecer que o Barreiro era uma terra com 10.000 operários – havia grandes conflitos sociais, grandes contrastes sociais e grandes problemas laborais. Acabei por ir parar àquele contexto, ao mesmo tempo em que conheci o José Afonso. Foram coisas que me ajudaram a abrir os olhos para uma realidade diferente daquela que tinha vivido até aí. Depois de o conhecer pessoalmente, estabelecemos amizade logo de imediato, porque percebemos que queríamos as mesmas coisas através da música. Foi depois do “Zip Zip” que não pararam os convites para tocar todo o lado. Integrei o grupo dos cantores – onde já estavam, essencialmente, o Zeca e o Adriano Correia de Oliveira, mas também o José Jorge Letria, o José Barata Moura, o Manuel Freire, o Rui Mingas e os outros – que usava a voz e música para romper o muro de silêncio que oprimia e, sobretudo, para provocar momentos de reunião.
– Como eram essas reuniões?
F.F. – Havia associações culturais e recreativas, cujos dirigentes eram, de uma maneira geral, pessoas com preocupações de ordem social que procuravam reagrupar as pessoas à volta das canções e dos poemas. Era sabido que nessa altura o maior tabu no nosso país era o da guerra colonial – estávamos em guerra desde 1961 e falar (ou escrever) dela era o pior risco que se podia correr. Mas nós nunca deixávamos de denunciar a injustiça da guerra colonial. Cada sessão era um marco na resistência e um ponto de partida para alimentar a revoltar e a chama sagrada do desejo de liberdade e de que a ditadura e a opressão acabassem no nosso país.
– Estas reuniões eram mantidas em segredo?
F.F. – Ao princípio, escapavam ao controlo da polícia. Mas, depois, cada vez havia mais sessões e cada vez eram mais frequentadas. Acabámos por ser acusados de minar e de destruir os valores morais que sustentavam a juventude e que levavam a que esta deixasse de ter em grande conta a defesa da pátria. No início, não eram proibidas, mas todos os textos e canções tinham de passar pela censura. Porém, a certa altura, começaram a proibi-las.
– Procuraram contrariar a censura?
F.F. – Às tantas, estávamo-nos nas tintas para a censura e tocávamos o que nos apetecia ou então conseguíamos controlá-la. Finalmente, começaram a vir ordens muito precisas para que “fulano, fulano e fulano fossem proibidos de tocar em público”.
– A polícia aparecia nestas sessões?
F.F. – Às vezes, a polícia aparecia para controlar e fazer um relatório completo do que se tinha passado. Aliás, descobri, mais tarde, na Torre do Tombo – já depois do 25 de Abril -, o dossiê que a PIDE lá tinha com o meu nome (como tinha de tantos outros) e percebi que a polícia fazia relatórios sobre como as coisas se tinham passado, fossem ou não autorizadas.
– Apercebiam-se de que a polícia estava ali?
F.F. – Normalmente, não passavam despercebidos. Quando víamos dois tipos encostados à parede lá ao fundo, desconfiávamos logo.
– A presença deles condicionava as vossas actuações?
F.F. – Não. Dizíamos apenas uma piada: “Agora era para cantar isto, mas o vento levou-me as folhas não sei para onde”. As pessoas percebiam logo o que se passava.
– Por que razão o proibiram de cantar?
F.F. – Além de cantor, era também padre. Foi um conjunto de circunstâncias. Denunciava, às vezes, nas homilias as injustiças da guerra colonial – em nome da justiça, do Evangelho e daquilo em que acredito. Não podia calar-me nem deixar de denunciar, tanto mais quando a Igreja Católica se calava completamente.
– Acabou por revoltar-se contra o Governo e a Igreja…
F.F. – Estava tudo ligado. O mais forte apoio moral do fascismo era a Igreja Católica.
– Proibiram-no também de exercer o sacerdócio.
F.F. – Sim, sim. As duas coisas aconteceram mais ao menos na mesma altura. E houve outra proibição: a de dar aulas de Educação Moral, no liceu do Barreiro. Depois de ter ido ao “Zip Zip”, no fim desse ano lectivo, não me foi renovado o contrato para dar aulas.
– Chegou a ver algum documento oficial com essas proibições?
F.F. – Havia um documento, emanado pelo Ministério do Interior para os Governadores Civis, que deveria ser executado pela polícia. Lembro-me de que, uma vez, quando ia tocar ao Entroncamento, no jantar antes da sessão, a polícia disse-me que estava proibido de cantar. Perguntei-lhe porquê e falou-me de uma ordem do Ministério do Interior. Tanto puxei pelo agente que acabou por mostrar um papelinho onde vinha qualquer coisa como: “Fulano, fulano e fulano, pelas suas intervenções, pela maneira como se referem à defesa da pátria, pela maneira como estão a minar junto da juventude os grandes valores da pátria, estão proibidos de cantar. Portanto, sempre que apareça qualquer situação em que eles vão cantar, eles devem ser proibidos de cantar.” Ele disse-me então que tinha ordens para me prender, caso abrisse a boca para cantar. Depois, aconteceu uma coisa curiosa: a pessoa que organizou a sessão disse publicamente o que se passava. Ao mesmo tempo perguntou ao chefe da polícia: “Nós não estamos proibidos de cantar?” E o chefe respondeu: “A única pessoa que está proibida é o Francisco Fanhais.” Então, durante a sessão, eu disse: “Se eu pudesse, cantaria o ‘Vemos, ouvimos e lemos.” E as pessoas começaram a cantar. O chefe da polícia passou uma vergonha completa.
– Por que lhe foi vedado o sacerdócio?
F.F. – Foi na altura em que aconteceu a celeuma do padre Felicidade, que era prior em Belém. Era um homem de uma coragem e de uma inteligência fulgurantes. Às tantas, teve um problema complicadíssimo com o Cardeal Cerejeira e foi excomungado das suas funções como padre. Tinha participado na cerimónia do casamento dele e, na sequência disso, fui suspenso das minhas funções como padre. Foi uma ordem do tribunal eclesiástico.
– Inibido de cantar, ensinar e de exercer o sacerdócio, decidiu refugiar-se em França?
F.F. – Em Abril de 1971, vi que era complicado e que precisava de respirar. Decidi ir para França.
– Em França, o que acabou por fazer?
F.F. – Fiz aquilo que não podia fazer em Portugal: cantei. Contribuíamos com as nossas vozes para fazer na imigração o que era suposto fazer em Portugal e que não podíamos. O braço armado da PIDE não chegava lá. Éramos vigiados na mesma, mas era mais através de informadores portugueses.
– Foi sempre acompanhando o que se passava em Portugal?
F.F. – Ia acompanhando pelos jornais portugueses, pela rádio, por correspondência, por telefonemas.
– Quando ocorreu a Revolução, já sabia que iria ter lugar?
F.F. – Sabia-se que a situação não poderia durar sempre e que, a qualquer altura, poderia acontecer qualquer coisa que abalasse o regime. Entretanto, houve um grupo de companheiros da LUAR que foi preso, em Novembro de 1973, e recebi um aviso de que não poderia regressar a Portugal.
– Estava a pensar regressar antes da Revolução?
F.F. – Encarei essa hipótese, mas quando soube que eles tinham sido presos, aí parei. Inclusivamente, a policia foi a casa à minha procura, mas eu não estava lá. Foi então que percebi que só quando houvesse uma revolução é que poderia regressar.
– No dia 25 de Abril, percebeu o que se estava a passar?
F.F. – Estava a conversar com um amigo de França por telefone, que me disse que se passava qualquer coisa em Portugal. A nossa dúvida, quando estávamos fora, era se seria um golpe de direita ou de esquerda. Quando ouvi pela rádio o “Grândola Vila Morena”, do Zeca Afonso, percebi de que lado era a revolução. Fiquei com o coração aos saltos e quando soube que as fronteiras estavam abertas meti-me num comboio, no dia 29, e cheguei a Santa Apolónia, no dia 30 de Abril.
– Quando chegou a Portugal, o que sentiu?
F.F. – Era uma alegria imensa, de quem esteve preso – sem ter estado preso – e, de repente, se sente liberto e sem um peso em cima. Sente-se uma alegria muito grande por saber-se que os companheiros que estavam presos foram soltos e por se poder gritar aos quatro ventos o que nos vai na alma. O 25 de Abril foi uma sensação de alívio muito grande.
– Retomou a sua vida como sacerdote?
F.F. – Não. Entretanto, a minha vida tomou outro rumo, porque tendo-me desligado da Igreja já não fazia sentido. Fui cantar. Estabeleceram-se as comissões de moradores, as cooperativas agrícolas, as ocupações das terras e das casas. E os cantores eram permanentemente convocados para incentivar, apoiar, assinalar ou festejar. Depois, em 1986, comecei a dar aulas de Educação Musical, em Beja.
– Como viveu o período imediatamente a seguir ao 25 de Abril, o chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC)?
F.F. – O PREC foi um período perfeitamente exaltante da minha vida, foi das alturas mais importantes e gratificantes. Depois do 25 de Abril, passei a tocar com o Zeca muito mais e participámos em acções conjuntas. Por exemplo, quando se estabeleceu o departamento de cultura da quinta divisão do Movimento das Forças Armadas (MFA), eu e o Zeca oferecemo-nos para integrar as acções culturais. Era bonito, porque sentíamos a democracia a nascer, quase em estado puro. As pessoas sentiam que com as suas decisões podiam mudar o rumo da História.
– Diz-se que foi um período de excessos. Concorda?
F.F. – Poderá ter havido excessos. A liberdade aprende-se e, às vezes, é preciso ter a cabeça fria para saber que rumos a liberdade deverá tomar. Por as pessoas terem vivido subjugadas e reprimidas durante dezenas de anos, de repente dão largas à sua imaginação e ao seu anseio de liberdade de uma maneira um bocado descontrolada. Mas não me aflige muito, não é suficiente para fazer contra-vapor ao bom que era as pessoas construírem a liberdade diariamente.
– Nos dias de hoje, o 25 de Abril ficou esquecido?
F.F. – Há muita gente a tentar fazer com que seja esquecido e, ao olharmos para a realidade política do nosso país, pensamos que é quase uma intenção de quem governa fazer esquecer o 25 de Abril. Mas, para quem o viveu alguma vez a sério, como eu o vivi, já estão enraizadas em nós a referência ao 25 de Abril e a importância dos seus valores.
– Os jovens sabem o que foi o 25 de Abril?
F.F. – Houve uma altura – durante o chamado Cavaquismo -, em que sentíamos nas escolas quase uma preocupação em fazer esconder aos jovens o que era o 25 de Abril. Mas os jovens saberão, na medida em que os professores e os adultos lhes disserem o que se passou, mostrando que há valores por que se devem bater.
– Hoje em dia, está envolvido na política?
F.F. – Apenas ao nível da música. Estou integrado no Bloco de Esquerda, mas não tenho actividade como político.

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