Os dias em que a China brilhou no mundo

Historiador holandês apresenta em Macau livro sobre período pré-Mao

Durante anos a fio, houve uma época da História da China que se pintou a negro. Entre o fim da Dinastia Qing e a subida de Mao Zedong ao poder passou quase meio século que foi extremamente politizado. Mas há agora uma nova forma de olhar para o regime republicano, defende Frank Dikötter. Em entrevista ao PONTO FINAL, o especialista em História Moderna explica porque é que o país brilhou como nunca nesses dias. E defende que será difícil recuperar esse fulgor. A razão é simples: falta a diversidade.

Isabel Castro

“Houve um império milenar, que não correu bem, acabou, seguem-se décadas confusas que não fizeram muito bem ao país e, graças a Mao, a China volta a estar unida em 1949.” Esta é a abordagem tradicional que, durante muito tempo, foi feita sobre o período que vai do fim da Dinastia Qing à criação da República Popular da China.
A frase pertence a Frank Dikötter, historiador holandês especialista em História Moderna da China, que ontem veio a Macau falar do seu mais recente ensaio, o livro “The Age of Openess – China Before Mao”. Neste livro publicado em Hong Kong, onde o académico dá aulas, contesta-se esta visão tradicional. Pretende-se explicar, de forma acessível para não especialistas na matéria, porque é que o período tradicionalmente pintado a negro do século passado foi, na realidade, uma época iluminada.
Primeiro esclarecimento: o período que vai do último imperador a Mao Zedong vai muito mais além do que o regime republicano. “São várias décadas, quase meio século, que não se pode apagar da História. Se olharmos para o século XX em perspectiva, a primeira metade não é, obviamente, o paraíso na terra, mas é um dos períodos mais fascinantes não só na História chinesa, como na História da Humanidade.”
Frank Dikötter sublinha que foi nas primeiras décadas do século passado que aconteceu a aproximação à modernidade, por via da política participativa e da construção do Estado de direito. “Começa-se basicamente a adoptar os princípios da modernidade, com uma extraordinária apetência e rapidez.”
A China acompanhou a grande mudança que aconteceu logo no final da primeira década do século XX um pouco por toda a parte. Em meados dos anos 30, era “um dos regimes mais progressistas do mundo”. O historiador fixa 1935 como ano para estabelecer comparações. “Era mais progressista do que Estados europeus como a Itália, Portugal, Alemanha e Espanha, que eram regimes fascistas.”
Na China de então – a da República sem “Popular” à frente – promoviam-se muito rapidamente padrões considerados nobres, “como o tratamento das mulheres, de prisioneiros, de categorias até então deprezadas, num processo extraordinariamente rápido”.

Ao mais alto nível

O país tinha uma presença no mundo que só agora começa a ser reconhecida, através de trabalhos de historiadores que se dedicaram à compreensão deste período peculiar do passado chinês. Frank Dikötter fundamenta as suas convicções.
“Margaret Chan, que se tornou recentemente directora geral da Organização Mundial de Saúde, foi aclamada como sendo o primeiro chinês a liderar uma organização internacional. Mas isso não é verdade.” Antes de 1949, exemplifica, “houve meia dúzia de advogados chineses que tiveram contribuições de grande relevo a nível internacional”. A China esteve representada por juízes permanentes em tribunais e deu uma contribuição para a concepção da Declaração dos Direitos Humanos, depois da II Guerra Mundial, no âmbito das Nações Unidas, aponta ainda o especialista.
Um outro exemplo demonstrativo do nível académico de então: a primeira tradução para inglês do Código Civil alemão, feita no início do século XX em Londres, deve-se a um advogado chinês. “Havia centenas de advogados e pessoal judicial administrativo formado em Tóquio, Cambridge, Oxford…”
O império desconhecia o Estado de direito, que começou a ser construído “muito rapidamente” pela república. “Na altura em que a Constituição foi aprovada, na década de 40, esse documento fundamental foi reconhecido internacionalmente como um dos melhores da época em comparação com os de outros países.”

O que correu mal

A pergunta impõe-se: nessa China em que se valorizava o intelecto e a erudição, o pensamento e a abertura ao mundo, o que correu mal? O livro de Frank Dikötter tem 130 páginas e essa outra história dava um volume com o tamanho da Bíblia.
De qualquer modo, o historiador deixa umas luzes. E esclarece que “a tese de que tudo era mau no período republicano, de que as pessoas abraçaram com naturalidade o Partido Comunista e estavam todas a querer que a revolução acontecesse já não é, sequer, defensável”.
Foram vários os factores que contribuíram para o fim de um regime de homens que achavam possível recuperar os atrasos causados por um império que conheceu uma grande decadência na sua fase final de existência.
“O Partido Comunista ganhou muita influência durante a II Guerra Mundial porque o Japão fez aquilo que os comunistas não foram capazes de fazer: destruíram os nacionalistas e Chiang Kai-chek”, afirma Dikötter. Depois – e talvez sobretudo – “houve outro homem que deu uma grande contribuição para a causa comunista e Mao em particular: Estaline”.
“Quando Mao, enquanto jovem, recebeu 100 dólares para ir ao primeiro congresso comunista em Xangai, em 1921, percebeu de imediato que aquele dinheiro lhe deu a independência, mas também o tornou dependente de Moscovo.”
De 1921 até 1949, Estaline foi o homem que fez com que a máquina comunista ganhasse consistência. “Tem uma enorme responsabilidade no facto de o movimento se espalhar tão rapidamente depois da II Guerra Mundial”, prossegue o professor holandês, que recorda ainda a inflação durante a II Guerra Mundial como um dos factores decisivos para o início da China de Mao.

Com Mao ou sem

Nos últimos anos, alguns historiadores começaram a descobrir que a China pré-1949 é “muito mais interessante e complexa do que fomos levados a crer durante a Guerra Fria”. Mas descobriu-se também que “o pós-49 esteve longe de ser o ideal”. Basta olhar para o Grande Salto em Frente e o número de vítimas que fez, entende Frank Dikötter, que vinca ainda a destruição generalizada do património do país.
“Até na China os historiadores estão a ver agora o período de Mao de uma perspectiva muito crítica. É como se o balanço geral que se faz do século estivesse a mudar. Há historiadores na China que, como ponto de partida, questionam se a revolução foi mesmo necessária”, relata o académico.
Um exercício de imaginação. E se Mao não tivesse subido ao poder? E se a geração que se seguiu à primeira metade do século tivesse tido oportunidade de afirmar a sua diversidade intelectual? Onde estaria a China agora? Provavelmente, diz Dikötter, exactamente no ponto onde se encontra.
“Se Mao não tivesse existido, se tivesse tido um ataque cardíaco aos 25 anos de idade, teria havido alguém pago por Estaline para desenvolver o Partido Comunista.” O professor admite que “talvez essa outra pessoa não tivesse sido tão implacável como Mao”, mas sublinha também que, de um modo geral, todos os regimes de um partido único foram “extremamente violentos”. E dá como exemplos a liderança de Estaline e de Hitler.
“Não sei se a figura de Mao foi assim tão importante”, duvida. Mas há algo que Frank Dikötter assume como sendo certo: “Por maiores que tenham sido os problemas da China durante a II Guerra Mundial e o impacto da inflação, não foi nada comparativamente com a destruição massiva que aconteceu depois de 1949.”

O valor da diversidade

Em “The Age of Openess – China Before Mao”, o historiador tenta demonstrar que quando um Governo é “fraco”, a iniciativa da sociedade civil atinge uma força muito maior. “Quando se combina isso com fronteiras abertas, mentes abertas, onde os livros são traduzidos e publicados e as ideias circulam, com abertura e participação na política, acontece a diversidade social”, vinca.
No seu ensaio, defende também que “a China era muito mais diversificada nos anos 20, 30 e 40 do que foi antes e do que tem vindo a ser desde então”. E a razão de assim ser é simples: “Era admitido às pessoas o direito à diversidade. A diversidade era uma marca do regime republicano.”
Segundo a leitura dos acontecimentos de Frank Dikötter, a China da primeira metade do século passado é uma realidade demasiado distante para servir de inspiração. O que se seguiu foi excessivamente marcante – e mudou a forma de estar de um país gigante.
“Receio que não seja fácil ultrapassar os efeitos de trinta anos de um regime de um partido único sob a liderança de Mao, mais as consequências de trinta anos de um regime de partido único sob o comando de vários líderes.” O historiador entende ser impossível acabar com “determinados hábitos, comportamentos, procedimentos que foram criados e incentivados por mais de meio século”. Em suma, “não é possível voltar a um modelo social que outros reconheceriam como sendo um modelo de desenvolvimento democrático”. O passado é um país distante.
Frank Dikötter é professor de Humanidades da Universidade de Hong Kong e de História Moderna da China na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Nasceu na Holanda mas foi educado na Suíça, onde se licenciou em História e Russo. Depois de dois anos a viver na China, mudou-se para Londres, onde fez o doutoramento em História.
O académico escreveu já seis livros sobre o período entre o fim do Império e a ascensão de Mao, “mas eram todos muito específicos”. Sentiu necessidade de escrever um livro “mais geral”, destinado ao público fora da academia, e assim surgiu a obra que serviu de mote para a palestra de ontem no Instituto Inter-Universitário de Macau.

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