O matador de Sonora

Saibamos alguma coisa da vida do frade, na sua vida no século, porque a do claustro era nua e nula, monótona e singela como a temos visto. Chamava-se ele no século Dinis de Ataíde, e seguira a carreira das armas primeiro, depois a das letras. Com distinção, e quase com paixão, tomara parte na campanha da Península e a fizera quase toda; mas desgostoso do serviço ou despreocupado da glória militar, entrou na magistratura para que estava habilitado, e em 1825, do lugar de corregedor do Ribatejo, em que já fora reconduzido, devia passar à casa do Porto. Foi a Lisboa receber o seu despacho, beijou a mão à el-rei, e dai tomou um dia o caminho de Santarém, chegou àquela vila, deixou criados e cavalos na estalagem, e foi tocar à campa da portaria de S. Francisco. Os criados esperaram em vão muitos dias e ele não voltou. Desapareceu do mundo Dinis de Ataíde, e dali a dois anos apareceu Frei Dinis da Cruz, o frade mais austero e o pregador mais eloquente daquele tempo. Raro pregava, e só de doutrina; mas era uma torrente de veemência, uma unção, uma força…

Almeida Garret, in Viagens na Minha Terra

Hélder Beja

Ser cronista neste século é um desafio. As estradas do mundo já estão batidas, os mares navegados, as montanhas escaladas, os céus atravessados por passarolas de lata. Para ser cronista neste século é preciso ter a sorte de encontrar a gente certa no caminho. Eu, bendita seja a fortuna, a tive comigo todo o tempo nesta viagem.

O acaso, meu acidental leitor, é a grande constância da vida. O acaso existe hoje e é tão valente hoje e tão importante hoje como era naqueles anos 1800 em que Garrett haveria de dar com Frei Dinis, o austero guardião de São Francisco de Santarém.

Como Garrett, munido de um faro narrativo impar (ou de uma imaginação, ou de um delírio), depressa percebeu ao avistar Frei Dinis que ali andava história, também este humilde autor soube ao conhecer Arturo Belano (nome adulterado de acordo com o anonimato e os preceitos mais selvagens da melhor literatura latino-americana) que ali andava coelho, para usar uma expressão querida aos caçadores das nossas charnecas.

Eu estou sentado num autocarro que se prepara para partir de Tallin com direcção a Riga quando o mexicano Arturo Belano entra nesta história, senta-se a uns bancos ou a uns capítulos de distância e começa a ressonar. Assim é, leitor: reparo primeiro em Arturo Belano porque Arturo Belano ressona com a mestria dos tenores e choca as sensibilidades das muito delicadas senhoras estónias e letãs que lhe servem de vizinhança. Arturo Belano é tomado por um bárbaro, o que talvez (porque nisto não temos nem teremos certezas) esteja perto da verdade.

Chegado à capital da Letónia, deixo para trás aquele tipo grande, pesado e de roupas pretas a denunciarem tiques metaleiros. Mas Arturo Belano, como o melhor dos detectives, segue-me e reencontro-o no Friendly Fun Franks Backpackers, ‘party hostel’ do delírio cor-de-laranja, em que te oferecem cerveja à chegada e, mesmo sem te dizerem, te põem dentro daquele filme do Stanley Kubrick. Arturo Belano aqui está – e pega na garrafa de cerveja como quem segura uma granada.

Quer o acaso (a tal constância da vida) que a minha conversa e os meus cigarros que cruzem com os de Arturo Belano, num balcão com vista para o rio Daugava. A noite acaba por juntar-me ao mexicano Arturo, ao francês Nicholas e ao italiano Paolo. Todos falamos espanhol e estamos contentes que, por uma vez, o espanhol vença o idioma dos bifes enquanto língua franca. O ‘orgulho latino’ – expressão muito utilizada nesta noite, especialmente pelo italiano Paolo – começa a instalar-se.

É então que Arturo Belano nos surpreende com a sua profissão e nos intriga ainda mais: Arturo Belano é professor universitário de robótica, está a viajar pela Europa depois de dar umas palestras em Londres, tem encontros marcados com académicos polacos. Eu, que não me deixo levar por curriculums vitaes desde o tempo do nosso melhor primeiro-ministro português com nome tão grego e tão clássico, desconfio. Nicholas diz-me que é professor num jardim de infância e Paolo que faz uma coisa qualquer que não me lembro. Creio-lhes. Agora, que Arturo Belano programa robots e é um ás em equações matemáticas? Não me lixem.

A noite trata-nos bem e há muito quem queira tratar-nos ainda melhor em variadas ruas da pequena cidade velha. Oferece-se sexo, oferece-se droga, oferece-se tudo o que não se oferece na Estónia. Estes letões são uns desgraçados. Recusamos simpaticamente as dádivas e acabamos num bar que é de todos o mais famoso. Chama-se ‘Francês’ (o que, estando nós na Letónia, faz todo o sentido) e é conhecido por ter os copos mais baratos de Riga, coisa que me interessa, pois que com o álcool acredito vir a ser mais fácil desvendar que segredos escondem os olhos balísticos de Arturo Belano.

E que não haja nisto mais delongas! O mexicano Arturo Belano é (tem de ser, há-de ser) o Frei Dinis destas viagens, um homem que se faz passar por cousa que não é, um homem que atrai como um íman, um homem grande que ressona. Ele esconde seus passados, meu vidente leitor, mas eu aqui lhe digo: Arturo Belano, ou Frei Dinis, foi (é, será) matador a soldo. E, já se sabe, uma vez matador, matador para sempre.

Fiquemos então por aqui no que toca a divagações sobre estas terras letãs que souberam alevantar-se contra os soviéticos e hoje continuam medievais, cheias de marcados, superstições e cabeleiras doiradas. Permitamo-nos um parêntesis e contemos a história de Arturo Belano, o matador de Sonora, como ela deve de ser contada para que se não olvide. Saibamos alguma coisa da vida do matador, na sua vida do século, porque a das universidades é nua e nula, robótica e tecnológica como a temos visto.

O corpo de Amalfitano era o mais pesado que Arturo Belano alguma vez carregara. Amalfitano, também conhecido por El Loco, não era grande nem gordo. Mas pesava como chumbo. Há-de ser a loucura deste a vergar-me as costas, queixava-se Arturo Belano. Arturo Belano aprendeu naquela tarde que nada pesa mais que a loucura de um homem. Mesmo de um homem decapitado, como estava El Loco Amalfitano.

Amalfitano vivia em Hermosillo, Sonora, tinha uma filha, pendurava livros com tratados de geometria no estendal da roupa, seguindo os conselhos do artista Duchamp e sujeitando as grandes fórmulas científicas às agruras do clima mexicano. Um dia a filha não voltou da escola e Amalfitano soube, por isso e pela cor do por do sol que era a cor dos mortos no deserto, que não voltaria a vê-la.

Assim fica apresentada muito sumariamente a causa da loucura de Amalfitano. Foi esse dia de sol matador que lhe levou a filha e em que Amalfitano, o Amalfitano que a gente conhecia e era um professor universitário muito capaz, acabou por dentro para deixar nascer outro.  Chamaram-lhe El Loco.

Amalfitano consultou o livro pendurado no estendal, escrito por um tal de Rafael Dieste, que não é mas podia ser um poeta obscuro. Olhou os vidros de garrafa espetados nos muros dos vizinhos, avistou a lonjura deserta de Sonora e viu acender-se ali a certeza de que a filha, de quem não diremos o nome para que sua memória em paz descanse, tinha sido levada pelo matador de Sonora. Este matador, adivinhou o perspicaz leitor, é Arturo Belano, o mexicano Frei Dinis que fomos encontrar em Riga camuflado de professor universitário de robótica.

Arturo Belano gostava de matar meninas. Não gostava de fazer mais nada, não era um pervertido, tinha-se por assassino muito digno e senhor de seu ofício. Arturo Belano, como os curas adormecem o homem que há lá dentro deles, gostava de botar para dormir e para sempre as mais bonitas meninas de Sonora e de olhar para elas enquanto o tempo passava devagar – em Sonora o tempo passa sempre muito devagar.

Numa manhã de um calor que silenciara todos os cães do México, Arturo Belano passava de carro e viu a filha de Amalfitano ao longe e foi como se água cristalina se alevantasse das areias. Não aqui a descreveremos (à filha), para que sua alma em paz descanse e também porque o autor teme não guardar cá dentro o talento e a mão firme dos maiores romancistas, meu inseguro leitor. Diremos apenas que tinha 17 anos e podia ser a bandeira mexicana, como Lisbela é a bandeira brasileira nessa fita de Guel Arraes que só os mais cínicos podem ignorar. Vivam os românticos.

Ao meio-dia de uma quarta-feira Arturo Belano botou para dormir a filha de Amalfitano. O ritual cumpria-o sempre ao meio-dia e ao meio da semana. Arturo Belano era antes de tudo e mais que nada um homem equilibrado. O que Arturo Belano não sabia (nem podia saber, porque o narrador somos nós e não ele) é que Amalfitano estava já meio louco, ouvia uma voz, sonhava com a sombra do tratado de geometria pendurado no estendal e em como essa sombra afectava o pátio.

Quando Amalfitano se viu sem a filha e percebeu que a filha não iria mais para Barcelona como ele queria, não conheceria um rapaz catalão e carinhoso, não iria ao cinema, não viajaria por Itália e pela Grécia em Julho e Agosto, quando Amalfitano percebeu tudo isto é que ficou um bocado triste. E um bocado louco, também.

Amalfitano comprou 123 garrafas de mezcal Los Suicidas, borrou a cara com batôn vermelho (acredita-se que seria o batôn da filha) e fechou-se em casa para planear a melhor maneira de encontrar e dar cabo do matador de Sonora, que actuava sempre ao meio-dia e ao meio da semana. Um assassino pontual não há-de ser difícil de alagar, pensou Amalfitano do topo da sua loucura.

Quis o acaso (a tal constância da vida) que Amalfitano e Arturo Belano, ignorantes das identidades e dos passados de cada um, viessem a fazer-se próximos e a meter diante de Arturo Belano a maior das provações, que é a de cortar a cabeça de um amigo, ainda mais de um amigo louco. Arturo Belano, como aqui se comprovou, passou com distinção no teste que metia tanta ou mais perícia que qualquer dos tratados geométricos pendurados no estendal e no pátio e na casa e na vida de Amalfitano.

Foi desta morte e do corpo pesado de Amalfitano que desapareceu do mundo Ulisses Lima, o matador de Sonora a quem chamámos até agora Arturo Belano, e dali a dois anos apareceu Arturo Belano, a quem chamámos até agora o matador de Sonora mas é em boa verdade o professor de robótica, o mais austero e o mais eloqüente deste tempo. Raro pregava, e só de programação; mas era uma torrente de veemência, uma unção, uma força ao nível dos códigos binários…

Desta mudança de nome, de como Arturo Belano (ou Ulisses Lima, ou Frei Dinis) se fez amigo de El Loco Amalfitano, e de como isso se prova nos comportamentos do professor de robótica que fomos encontrar em Riga te darei em conta em www.viagensnaterradeles.wordpress.com nos dias que se seguem. Por isso põe-te online, ó leitor, ou perderás o fio destas viagens. As páginas de jornal não dão para tudo, a morte é certa e Arturo Belano anda a solta, cheio de vontades de embarcar para Macau.

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