“Pequim não precisou de Lisboa para chegar aqui”

Portugal “não acordou nem vai acordar” para o facto de a China ser uma potência a nível internacional com a qual faz sentido estabelecer parcerias comerciais. Quem o diz é Carmen Mendes, do departamento de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra. A investigadora esteve ontem na Universidade de Macau para uma conferência dedicada ao tema “A transferência de Macau – um caso de retrocessão e não de descolonização: implicações para a Região Administrativa Especial”.

“Se durante tantos anos de presença em Macau, Lisboa nunca agiu de outra forma, não seria depois da transferência que isso iria mudar”, diz Carmen Mendes. Os motivos, explica, prendem-se com preconceitos políticos e comerciais que fizeram com que “a China nunca estivesse na lista de prioridades” lusas. “A política externa e a diplomacia económica portuguesa não passam pelo Oriente e poucos são os empresários em Portugal que vêem a China como um destino mais atraente do que os países de língua portuguesa ou a Europa”, esclarece a investigadora, chamando a atenção para o “ciclo vicioso” do qual o país parece não conseguir sair.

Em relação ao processo de integração da RAEM no contexto do Delta do Rio das Pérolas, Carmen Mendes admite que este está a ser encarado “com alguma apreensão” mas com consciência da sua “inevitabilidade”. “Se essa integração será benéfica ou não para a RAEM, só o tempo o dirá”. A especialista não acredita que a China vá conduzir este processo de forma a pôr em causa a autonomia estipulada na Lei Básica, “precisamente porque tem todo o interesse em que Macau continue a ser um bom exemplo (para Taiwan e para o mundo) da aplicação da fórmula ‘um país, dois sistemas’”.

A investigadora, que se encontra no território a fazer investigação sobre o papel de Macau na ligação da China aos países lusófonos, diz que a forma como o Continente tem lidado com a integração de Macau “enfatiza a dimensão pragmática da sua política externa”. Portugal, acredita, não foi essencial no estabelecimento da RAEM como plataforma entre a China e os países de expressão lusófona: “Pequim não precisou de Lisboa para chegar aqui”, diz, reconhecendo, no entanto, que a China demonstrou interesse num papel mais activo por parte de Portugal. Ainda assim, “se o Fórum de Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa foi criado em Macau em 2003 é porque Pequim queria, de facto, liderar o processo”.

A caracterização da transferência como uma “retrocessão” e não uma descolonização é justificada por três grandes motivos. Para Carmen Mendes, a China nunca considerou Macau e Hong Kong como colónias e enquadrou os territórios “no processo de retrocessão de concessões territoriais dos anos 1920 e 30, como foi o caso de Weihawei e Xangai, e de Taiwan em 1945”. Da mesma forma, “Portugal e Grã-Bretanha não consideravam Macau e Hong Kong como colónias formais, em parte devido à percepção da legitimidade das reivindicações chinesas”.

O termo “retrocessão” justifica-se, finalmente, pelo processo de retorno, e não de independência, por que passaram Macau e Hong Kong. “As negociações para os processos de retirada portuguesa e britânica não foram entre a metrópole e as suas colónias, mas entre a metrópole e um terceiro país, que se esperava que assimilasse as colónias”, defende. I.S.G.

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