Segredos? Quais segredos?

O antigo Chefe do Executivo vai ser inquirido no Tribunal Judicial de Base, na qualidade de testemunha arrolada pela defesa de Pedro Chiang. A questão foi discutida ontem em mais uma audiência de julgamento do quinto processo relacionado com o escândalo Ao Man Long. Não foi pacífica, mas a defesa levou a melhor.

Isabel Castro

O juiz Mário Silvestre, presidente do colectivo responsável por avaliar o processo que tem Pedro Chiang como primeiro arguido, decidiu ontem notificar o ex-Chefe do Executivo para que compareça em sede de audiência de julgamento, no sentido de ser inquirido como testemunha arrolada pelo empresário.
Volvidos quase quatro anos da detenção do ex-secretário Ao Man Long, e três meses depois de ter abandonado a liderança política da RAEM, Edmund Ho fica oficialmente convocado a quebrar o silêncio em que se escudou sobre o escândalo de corrupção protagonizado por um dos elementos da sua equipa governativa.
Apesar de ter sido frequentemente instado a pronunciar-se sobre o caso, principalmente pelos deputados da Associação Novo Macau, o primeiro Chefe do Executivo da RAEM justificou sempre o seu silêncio como uma forma de não interferência no sistema judicial, atendendo às funções que exercia.
O julgamento de Pedro Chiang e de mais doze arguidos é o quinto relacionado com o caso Ao, mas o primeiro a decorrer depois de Edmund Ho ter terminado o seu consulado, findando-se assim as suas invocadas razões de natureza política para o silêncio.
No entanto, lei aprovada nas vésperas do final do seu mandato veio dispor sobre o que podem ou não dizer os ex-titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos em procedimento criminal. O diploma foi ontem chamado à colação pelo presidente do colectivo de juízes, quando chegou a hora de se pronunciar sobre o arrolamento das testemunhas abonatórias de Pedro Chiang.
“Não podem ser inquiridos como testemunhas, peritos ou declarantes sobre factos confidenciais ou reservados de que tenham tomado conhecimento no exercício das respectivas funções, sem que seja obtida autorização prévia do Chefe do Executivo”, citou Mário Silvestre.
O facto de o juiz ter mencionado a lei em questão teve pronta reacção do defensor de Pedro Chiang. “Não é minha intenção fazer perguntas sobre factos reservados ou confidenciais”, afiançou João Miguel Barros, acrescentando que tudo aquilo que o ex-Chefe do Executivo sabe não pode ser classificado como reservado ou confidencial. “Não tenho nenhuma ideia de tentar desvendar os factos confidenciais da governação de Macau que são, aliás, os mais conhecidos de todos”, afirmou o advogado.
Silvestre ainda veiculou a hipótese de se facultar a acusação ao actual Chefe do Executivo, mas João Miguel Barros rebateu a ideia. “O ex-Chefe do Executivo é um cidadão normal. Nem todas as matérias de governação são confidenciais ou reservadas, até porque a governação é pública”, vincou, explicando que mais não pretende do que inquirir Edmund Ho sobre temáticas abordadas na Assembleia Legislativa (AL).

Mandar as perguntas ao Chefe

O Ministério Público (MP) mostrou ter um entendimento bem diferente da lei em discussão e, se assim o entendermos, também da forma como está estruturado um dos princípios basilares da RAEM. “Em relação a essas testemunhas [a presença de Susana Chou no TJB estaria aparentemente também em discussão], a defesa diz que a matéria não vai envolver assuntos confidenciais. Quem é que tem o poder de definir a natureza desse conteúdo? Acreditamos que isso compete ao Chefe do Executivo, e não à defesa ou ao tribunal.”
Foi com base nesta convicção que o procurador-adjunto propôs que as questões a colocar a Edmund Ho fossem “enviadas para o Governo, para uma avaliação”.
João Miguel Barros não perdeu tempo na contestação da ideia: “O Ministério Público quer que o Governo decida em nome do tribunal, o que não me parece adequado”. O advogado lembrou ainda que Edmund Ho terá o seu direito à reserva.
“Edmund Ho disse que não queria falar enquanto fosse Chefe do Executivo. Passou a ser um cidadão normal”, reiterou o defensor de Pedro Chiang.
Porque a matéria exigia “ponderação” e o final da sessão da manhã estava a chegar ao fim, Mário Silvestre remeteu para a parte da tarde uma decisão sobre a deslocação de Edmund Ho ao tribunal. O colectivo de juízes acabou por atender à pretensão de João Miguel Barros, pelo que o ex-Chefe do Executivo será notificado pelo tribunal.
Por seu turno, o advogado comprometeu-se a, no início da inquirição, elencar as áreas a abordar. Já quanto à antiga presidente da AL, Susana Chou, “o problema não se põe da mesma maneira”, salientou João Miguel Barros. Ao que parece, a testemunha já está admitida.

Alves não vai ser testemunha

O deputado Leonel Alves tinha sido também arrolado como testemunha abonatória. Acontece que, no presente julgamento, o também advogado é defensor de um dos empresários acusados de corrupção no processo de ampliação do Estádio de Macau. Mário Silvestre quis saber qual a posição de Alves em relação a “este dever de testemunhar”.
“Presumo que seja a título meramente abonatório”, começou por responder o advogado, vincando depois estar perante um complicado conflito de interesses. “A minha consciência dita-me que seja privilegiado o dever de prosseguir a defesa do meu constituinte”, declarou, acrescentando tratar-se de uma decisão tomada “com pena”. A única hipótese seria a inversão, pelo tribunal, da ordem do processo, para que fosse ouvido antes, aventou ainda Leonel Alves.
Foi João Miguel Barros que resolveu o problema, prescindindo da testemunha. “Assim fica de consciência tranquila”, disse ao colega.
Há dois outros deputados que foram arrolados testemunhas abonatórias: Chan Meng Kam e Ung Choi Kun, a bancada de Fujian da Assembleia Legislativa. Mário Silvestre deu a indicação que fossem enviados ofícios para o órgão legislativo, que terá de se pronunciar sobre a exequibilidade das inquirições.

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