Memórias de uma animada travessinha

A partir do documentário que teve estreia no ano passado, “Páteo do Mungo” surge agora em álbum de fotografias da autoria de Season Lao e  com poemas de Carina Leong. É apresentado dia 27, no espaço Fantasia.

Maria Caetano

“O que é eterno é a mudança, e não a memória”, diz-nos Season Lao Sin-Hang. Um jovem de 22 anos, outrora criança que como algumas outras brincava na soleira das portas abertas, dia e noite fora, para uma pequena travessa que vai da Rua Almirante Sérgio à Rua da Praia do Manduco: o “Páteo do Mungo”.
É frase de uma juventude quase precocemente sábia, aquela que dá mote ao documentário homónimo da “travessinha”, tratada com apego e antecipada nostalgia face à previsível demolição do conjunto de treze casas erguidas e telhadas no estilo arquitectónico tradicional de Fujian – para em meados do século passado serem adquiridas pelo clã Lei, oriundo dos arredores de Cantão e chegado a Macau em fuga à ocupação japonesa.
O último dos senhores Lei que ali morou viria a falecer. A venda das casas sucedeu-se, pondo fora quem já lá morava há muitos, muitos anos. Season soube a notícia em Portugal e quando regressou ao território quis guardar a tal memória, efémera no ciclo das coisas.
“Páteo do Mungo” já foi exibido, não só em Macau, como também em Portugal. Mas a obra realizada por Season Lao e produzida por Kin Man Cheong é agora relançada: em livro e em exposição com inauguração marcada para dia 27 no espaço Fantasia10, no Bairro de São Lázaro.
O pátio que recebe o nome das vagens do feijão que prolifera pelo sudeste asiático (mungo) – que se julga outrora ali cultivado – é agora lembrado com um álbum especial que reproduz fotografias de Season Lao, tiradas aquando da produção do documentário, e poemas de Carina Leong: “Naqueles anos passados/ Tu, travessinha, estavas muito animada/não estavas?/ O teu portal descreve claramente o ontem/ O teu altar na esquina consagra as crenças da vida”.
O portal ainda lá está, do que antes terá sido efectivamente um pátio, de travessia travada ao fundo. Hoje é rua aberta à caminhada. O álbum mostra as paredes de onde caiu a cal, a madeira que foi comida pelo tempo, a ferrugem que tomou conta das grades e das caixas de correio, as cartas que se amontoam endereçadas a quem já lá não mora, e os telhados do casario, cobertos de objectos que ficaram para trás. Estão nele também o rosto dos últimos velhos de uma pequena aldeia no meio da cidade, e que no documentário falam de histórias de cheias e incêndios, mortes e nascimentos e das crianças que ali um dia pedalavam as tardes – como Season.

Paleta local

O autor viveu ali entre os três e os treze a catorze anos de idade. “É uma pena. As casas existem e algumas fachadas foram restauradas. Mas é uma pena, ainda assim”, diz com poucas palavras. Não é que não haja em Macau outro lugares como aquele, confessa. Mas este foi seu por uma década.
“De facto, as casas do Páteo do Mungo não são assim tão especiais. Em Macau, há ainda muitas casas semelhantes. Como vivi lá durante a infância, o lugar tem um significado grande para mim. E Macau mudou muito rapidamente”, entende.
Mas não só a Season encantam as cores e lembranças da “travessinha”. No ano passado, uma investigação conjunta do Museu de Macau e da Academia Chinesa de Belas Artes escolheu quatro exemplos de lugares que melhor ilustram as cores do território – e lá estava o velho pátio. “Não sei se foi devido ao documentário, mas a investigação foi publicada depois da exibição do documentário”, conta Season.
A Associação dos Arquitectos de Macau também recomendou o lugar como um daqueles a preservar no âmbito do Projecto de Lei de Salvaguarda do Património Cultural da RAEM. E a Academia Chinesa de Planeamento e Desenho Urbanos destacou a importância do conjunto histórico-comunitário, que defende que poderia ser explorado como passeio turístico.
Já o realizador do documentário, que produziu a obra com a colaboração de um grupo de jovens associados ao projecto Studio Nilau, sentiu sobretudo a vontade de “retratar, registar o que se passou no Páteo do Mungo, as cenas da vida que havia lá”.
“Como designer e artista, tento obter inspiração. Trabalhando na minha área, gostava de  alertar para a necessidade de proteger lugares como este”, afirma.
“Naturalmente, o sentido de pertença baseia-se na atitude da própria pessoas e na vivência que têm. Tendo nascido em Macau, é algo que acontece naturalmente”, explica sobre a sua ligação ao lugar.
Com pouco mais de vinte anos, Season não sente ser essa a razão que pode destacar este trabalho dos demais. “Não é uma questão de idade. Tem a ver com a atitude perante a vida”, entende. E, ele, “tendo nascido numa cidade que é resultado do encontro entre as culturas chinesa e ocidental”, afirma querer descobrir também “o que torna Macau diferente de outros lugares”
“Sinto-me diferente dos outros”, assume. “Muitos procuram imitar o que se faz noutras culturas, mas eu quero criar a partir da minha cultura. Tem a ver com a minha experiência de vida, que é o que de facto me inspira”.
O álbum “Páteo de Mungo”, de design cuidado, traz também o DVD do documentário. O livro é publicado em encadernação tradicional chinesa, conforme os usos a dinastia Song: o álbum é perfurado em cinco pontos e unido com fio; cada página tem dupla folha, unida pelos pontos de fio verde, como o mungo.

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