A cantiga e uma arma

Podem ser mistura explosiva, se a estas se juntarem os ingredientes de um temperamento acalorado e umas doses substanciais de álcool. Nas Filipinas, há quem morra e mate pelo microfone em muitos clubes de diversão nocturna. O karaoke é entretém nacional e é levado – mesmo – a sério. O New York Times bem avisava na sua edição de fim-de-semana. O cantor e jornalista Herbert Ramos confirma e alerta turistas incautos.

Maria Caetano

Nas Filipinas, as autoridades inventaram recentemente uma classificação informal para um novo tipo de criminalidade. Os chamados “homicídios My Way” ocorrem em série e dão forma a uma espécie de mito urbano, segundo o qual os frequentadores de karaoke que arriscam cantar o famoso tema escrito por Paul Anka e interpretado por Frank Sinatra acabam, por razões misteriosas, por provocar a ira irracional de quem os escuta. Quem ouve – mais uma vez, por estranha ordem de factores – sente-se irresistivelmente impelido a pôr termo à vida do cantor da ocasião. E uma normal noite de farra acaba em banho de sangue.
Para não tentar a sorte, há quem já se iniba de expor afinação e talento em bares que congreguem multidões. E muitos clubes de karaoke retiraram já o eterno tema da lista de canções disponíveis, segundo avançava uma reportagem do New York Times, no passado fim-de-semana.
E adiantam-se razões – umas mais místicas, outras mais disparatadas. “Serão os homicídios produto natural de uma cultura de violência, de embriaguez e machismo? Ou haverá algo de inerentemente sinistro na canção?”, questionava o jornal norte-americano que admite até que as Filipinas, país de gargantas orgulhosas da sua afinação, tenham perdido tolerância por que canta fora de tom.
Na verdade, há quem diga que não é de hoje haver serões de karaoke e exaltação que resultam em tiroteio. A frequência de muitos espaços de entretenimento filipinos significa, seja qual for o repertório escolhido pelos cantores, um tiro no escuro – ou no parceiro do lado. Em particular, os clubes de canção a pedido onde os temas se interpretam em público, são de todo desaconselháveis e um risco que só assume quem quer ou quem entra ao engano, defende o jornalista da TDM, Herbert Ramos.
Também cantor em horas vagas, Herbert desconhece a história dos “homicídios My Way”, mas admite que entrar num clube de karaoke de Manila pode muito bem equivaler a um atestado de óbito.
O próprio jornalista assistiu a graves incidentes em estabelecimentos nocturnos da capital filipina. No caso, não foi por obra de qualquer hipotético conteúdo subliminar presente em temas interpretados por Frank Sinatra. Igualmente popular, a canção “Hotel Califórnia”, dos Eagles, foi motivo de disputa pelo microfone entre dois empenhados – e embriagados – cantores, que terminou em crime de sangue.

À procura de sarilhos

A bebida, a falta de controlo sobre o porte de armas em muitos estabelecimentos, e desgarradas de tom exaltado entre mesas de convivas que rivalizam pela melhor interpretação para um dado tema, são histórias que, via de regra, acabam mal. Segundo Herbert, no país só os mais incautos, ou quem procura deliberadamente sarilhos, têm coragem de passar a porta destes clubes – que chegam a receber, por noite, mais de um milhar de ‘cantores’ de sangue quente.
Herbert, natural das Filipinas, sabe bem que a realidade descrita pelo “New York Times” não é fruto de um qualquer mito urbano. No arquipélago do sudeste asiático, mata-se e morre-se pelo microfone com uma estranha naturalidade.
“É verdade, grande parte das vezes. Mas não tem a ver com essa canção em particular”, diz. Embora os temas mais populares sejam, de certo, os mais fatais. “Vi alguém ser alvejado por causa do Hotel Califórnia”, conta.
Mas para o filipino, é também a casa que faz os clientes. Este tipo de clubes onde a canção se interpreta em público, e muitas vezes em competições, têm por norma ambientes ‘pesados’. “Este tipo de estabelecimentos de entretenimento em Manila são bastante tórridos. Em certas ocasiões em que as pessoas se encontram bêbedas, tendem a fazer coisas muito estúpidas das quais se arrependerão mais tarde”, admite.
“Em parte tem a ver com o álcool, que agita muito as coisas. Mas, quando falamos de karaokes e espaços de entretenimento em Manila, não se tratam de lugares aonde vão trinta pessoas ou pouco mais. Falamos de sítios que são frequentados por milhares de pessoas. Às vezes o ambiente fica mesmo muito intenso em resultado de uma discussão mais acesa. As pessoas matam-se, literalmente, dentro destes espaços. É algo muito comum, não apenas nas zonas de província, mas sobretudo em Manila”, revela.
À semelhança de Macau, Hong Kong, ou China continental, e muitos países asiáticos, o karaoke está no itinerário de grande parte das saídas nocturnas nas Filipinas. Porém, na terra do tagalog , as versões são levadas a sério e o entretém tem história que só rivaliza com o cenário japonês.
“Há muitos anos que existem karaokes em Manila. Em Macau, começaram no início dos anos noventa. De onde venho, existem já desde os anos oitenta. Utilizavam-se cassetes e não havia vídeos”, compara Herbert, para quem a cultura de karaoke local e a do país-natal não têm qualquer comparação: “separa-as um distância de cerca de vinte anos”, defende. “Aqui, o karaoke significa lazer, mas em Manila há sempre uma agenda escondida ou um propósito obscuro quando se frequenta lugares como esses. É, basicamente, suicídio”, alerta.
“Quem quer que vá a estes sítios sabe ao que vai. Não são lugares que as pessoas frequentem na brincadeira – lá, toda a gente sabe cantar. É aqui que começam os problemas. Se há gente e confusão a mais, e se alguém se tenta destacar, é quando começam as discussões acaloradas e a irracionalidade toma conta do lugar”, admite o filipino, que lembra que de onde vem não ter queda para a música é motivo em embaraço. E tê-la é um risco.
“Não conheço nenhum filipino que não goste de música. Toda a gente sabe cantar, ou, pelo menos quer cantar. Pode parecer estranho, mas por vezes quanto melhor é o cantor, mais se agitam os temperamentos em redor. Começam os despiques e as coisas ficam feias”, explica.

Terra de armas e cantores

A proliferação de armas de fogo no país concorre para fazer do que seriam simples desacatos, cenários de películas de ‘faroeste’ adaptados ao extremo leste. Segundo Herbert Ramos, são também muitas vezes as chamadas forças da ordem a pôr os bares em desordem.
“Normalmente, vê-se clientes habituais como polícias numa mesa e um grupo de militares noutra, que decidem cantar a mesma música que os polícias. Primeiro, começam por competir. Mas estes homens têm armas”, enquadra.
Do despique à desforra é um passo, consentido pelas altas doses de álcool ingerido e por uma aparente impunidade. “Há concursos em que todas as pessoas são convidadas a cantar um determinado tema. Haverá a noite de Elvis ou de Frank Sinatra. Todos cantarão a mesma coisa, no mesmo formato. Se, por exemplo, os polícias ganham o primeiro prémio e estiverem bêbados, tal como os militares – que não aceitam a derrota -, os dois grupos sacarão das armas e começarão um tiroteio. Esta é uma situação considerada normal”.
O jornalista explica que alguns espaços nocturnos proíbem a entrada de armas, “mas os agentes de segurança não são controlados. A regulação sobre porte de armas nas Filipinas é muito frágil”.
Já um eventual código de conduta para evitar potenciais conflitos “não existe”. “Quem gere os clubes escolhe uma espécie de mestre de cerimónias que tenta controlar a multidão para as coisas não ficarem feias”. Nem sempre com sucesso.
Quem conhece aos bares a fama, evita, e escolhe sítios mais recatados, onde é possível exercer os dotes vocais em privado, à semelhança do que acontece na generalidade dos estabelecimentos de karaoke da RAEM. Herbert, pelo menos, não arrisca. “Não frequentamos os clubes de karaoke porque sabemos de antemão o que irá acontecer. Não é seguro”, afirma.
“Se um transeunte estiver distraído ao entrar no lugar e não se aperceber que está a decorrer um concurso, pode arriscar cantar o ‘My Way’”, com consequências imprevisíveis. A fiar pelo que diz um dos guias de viagens mais referenciados do mundo, o turista que visita a Manila segue desprevenido: o Lonely Planet, na sua versão ‘online’, recomenda a passagem por alguns dos estabelecimentos de karaoke da capital, sem qualquer alerta.

Macau sem duelos pelo microfone

Diz o senso comum que há locais a visitar e outros a pôr de parte num itinerário pelas principais casas da canção do território. Relatos de frequentes rixas entre grupos rivais à porta de estabelecimentos de karaoke da cidade dão má fama a muitos espaços, por vezes comummente associados ao mundo do crime organizado. Mas ainda assim, os despiques pela melhor interpretação não são causa para um desfecho trágico, e os microfones são grande parte das vezes partilhados entre amigos na privacidade de uma sala alugada. A responsável de um espaço de karaoke de Macau, localizado na Doca dos Pescadores, garante que o estabelecimento não tem historial de desacatos. “As pessoas não gozam umas com as outras e comportam-se. O nosso karaoke tem um ambiente familiar. Ninguém goza com ou agride alguém caso essa pessoa não cante bem”, diz Amy. A gerente do clube Cash Box garante também que não existe qualquer código de conduta destinado a evitar conflitos: “Não é necessário. A maioria dos clientes porta-se bem”. As únicas regras que vigoram são aquelas impostas por lei. “Naturalmente, os menores de idade não podem entrar. Também não é permitido trazer drogas e são proibidos desacatos”, explica. Quem tentar fugir à norma “é convidado a sair ou levado para a rua pelos amigos”.

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