O português que melhor conhece a China

António Graça Abreu foi o primeiro português a viver na China depois da Revolução de 49 e ainda antes do restabelecimento das relações diplomáticas. Regressado de uma longa viagem à China, aquele que será português que melhor conhece o país, partilha memórias.

João Paulo Meneses

Hoje pode parecer estranho (até porque em Portugal se diz que há sempre um português em qualquer lado), mas durante décadas não houve portugueses na China – se excluirmos Macau, Hong Kong ou mesmo Taiwan.
Desde que o consulado de Cantão foi fechado e o então chanceler saiu da China (o macaense Eugénio Miguel, no início de 1967) e até que as relações diplomáticas foram retomadas (30 anos depois) que não houve oficialmente portugueses na China – isto se se excluir alguém com dupla nacionalidade que por lá tenha ficado, a seguir.
António Graça Abreu é a excepção: «fui para a China através do PCP (m-l), o único partido político que depois do 25 de Abril manteve durante vários anos um relacionamento institucional com o Partido Comunista da China. Os chineses pediram ao Eduíno Vilar e ao Álvaro Vasconcelos, então dirigentes do PCP (m-l), que na primavera de 1977 visitaram a China, professores de Português e tradutores».
Um pouco surpreendentemente, Graça Abreu, que mantinha ligações ao Partido, oferece-se, ele que na altura dava aulas na Escola Comercial Gama Barros, na zona de Lisboa. «Fui, por curiosidade, para tentar conhecer o mundo chinês, para aprender, até chinês».
Graça Abreu chegou a Pequim em 1977 e, numa primeira fase, ficou até Novembro de 1981, trabalhando e ensinando. Regressou a Portugal, mas em 1982 estava outra vez na China, de onde saiu definitivamente em Maio de 1983. Nestes últimos anos esteve quase sempre em Xangai (e um mês e meio em Macau) onde conheceu e acabou por casar com uma mulher chinesa – hoje ainda a sua mulher.
Desses anos recorda que viajou muito pela China, da Mongólia Interior a Yunnan, da Manchúria a Sichuan ou a Macau. «Diluí-me pelo país, como gosto de fazer, e aprendi algum chinês». E foi jornalista e o primeiro correspondente em Pequim de jornais portugueses (no caso, Diário de Notícias e Expresso, mas também da Antena Um e da Rádio Macau). «Foi uma extraordinária e enriquecedora experiência humana».
Desses tempos recorda também como a sua «ingenuidade revolucionária» se foi «desvanecendo», à medida que constava «no dia a dia, que a China real era diferente do que os marxistas-leninistas maoístas e a propaganda oficial pretendiam mostrar»

Ensinar sinologia

Regressado a Portugal em 1983 nunca mais perdeu a sua ligação à China. Logo em 1986 e 1987 é convidado para leccionar a cadeira de História da China Moderna, no Instituto de Estudos Orientais da Universidade Nova de Lisboa. Hoje afirma que «gostava de ter continuado a ensinar Sinologia, o que não foi possível. Os meus poucos alunos [em 1986 a China não despertava o interesse que hoje suscita] não aprenderam grande coisa mas eu aprendi imenso».
O que a Universidade não lhe deu, Graça Abreu encontrou na então Missão de Macau (actualmente Delegação Económica e Comercial de Macau em Lisboa) onde, desde 1990 e até 2004, anos após ano, leccionou os cursos livres de Cultura Chinesa, História da China ou História de Macau. «Foram catorze anos com aquele auditório (70 lugares) sempre cheio. E levei umas centenas de alunos em viagens  culturais à China».
O currículo chinês de Graça Abreu inclui ainda, em 1998 e 1999, uma ligação ao Centro de Estudos Chineses do ISCSP (onde leccionava História da China e Pensamento Chinês), da Professora Ana Maria Amaro.
Depois da experiência de 1977-1983, Graça Abreu regressou múltiplas vezes à China, sobretudo a partir de 1991 (até por razões pessoais, já que tem família nas províncias de Anhui e Shandong, onde um seu filho nasceu em 1992 já que é a terra do avô). «Claro que preciso sempre de ir à China, adoro viajar e devo ser o português que mais lugares da China visitou.
Mas faltava a ‘grande viagem’, que se realizou no final do ano passado.
Reformado da sua profissão de professor do ensino secundário, Graça Abreu passou a ter o tempo que antes lhe faltava para «ir e ficar na China». De Maio a Setembro do ano passado viajou por muitos lugares da China como Jiansu, Anhui, Zhejiang, Guangxi e Hunan, sem esquecer Xangai (e incluindo Macau e Hong Kong, onde lançou a sua quarta tradução de um grande poeta chinês, neste caso os Poemas de Han Shan). «Pela primeira vez, tive um carro e viajei conduzindo um automóvel por auto-estradas e estradas do interior da China, o que, apesar da loucura do trânsito, meu deu um enorme prazer. O que vi, como sempre, dá para um livro».

Livros novos e velhos

Os livros fazem parte da vida de Graça Abreu – os que já publicou e os que ainda pensa editar. Dos 14 que já escreveu, treze têm «a China lá dentro» (sobretudo tradução de poetas clássicos chineses). Mas reconhece que nunca escreveu «sobre as mudanças nestes últimos trinta anos». Ou seja, pode estar aí mais um livro, uma edição que junte dois acervos patrimoniais absolutamente únicos – e não só em língua portuguesa: aquele que o próprio admite ser um fabuloso acervo de fotografias e um diário da sua primeira experiência na China (e de que apresentamos aqui as três primeiras páginas, por deferência do autor), «a publicar um dia».
Esta poderá ter sido a última grande viagem de Graça Abreu à China, mas não será certamente a última viagem. Se mais não houver, razões familiares (a mulher vive há 24 anos em Portugal mas não deixou de ser chinesa!) levá-lo-ão de volta a uma terra que descobriu por curiosidade em 1977 e que aprendeu a admirar.

Os primeiros dias de Graça Abreu na China (1977)

Pequim, 8 de Setembro de 1977

Emoção ao chegar à China.
O aeroporto pequeno numa manhã de sol, o grande retrato de Mao Zedong, a garganta presa.
O acolhimento afectuoso, fraterno dos camaradas chineses, futuros companheiros de trabalho.
O primeiro contacto com Pequim. Camponeses, carroças, casas pobres. As árvores bordejando a estrada, a vegetação repousante, as gentes que não conheço.
A primeira decepção, a habitação que me destinaram, um apartamento feio, esquisito, mal mobilado. Vai ser preciso mudar esta casa. Estranha sensação do estranho.
A primeira saída até ao centro da cidade. Pequim plana, avenidas largas, milhares e milhares de bicicletas, poucos automóveis sempre a buzinar. Trânsito desorganizado mas que funciona, reina uma grande ordem nesta desordem. Ainda hortas e terras cultivadas, os campos entram por dentro da cidade. Sempre muita gente. Transparece uma ideia de pobreza, não de miséria.
A Praça Tian’anmen, a da Paz Celestial, enorme, vazia, majestosa. Amanhã faz um ano que morreu Mao Zedong. Cortejos com milhares de pessoas vêm depositar coroas de flores, de papel, nas tribunas da Praça e junto ao monumento dos Mártires da Revolução porque haverá cerimónias oficiais comemorativas do primeiro aniversário da morte de Mao.
No primeiro dia ainda uma visita e algumas compras na Loja da Amizade. Creio ser um dos grandes armazéns de Pequim, destina-se a estrangeiros e tem montanhas de coisas bonitas e baratas.
Ao jantar, neste hotel que tal como a loja também se chama “da Amizade” e é uma Babilónia de línguas e gentes de todo o mundo, conversa com um velho casal brasileiro e outro colombiano, todos refugiados políticos.
Cansaço, um dia pleno.

Pequim, 9 de Setembro de 1977

Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras ou melhor Waiwen Shudian, (chama-se assim em chinês, perguntei esta manhã), um dos meus locais de trabalho. Edifício pesado, um caixote com seis andares, espartano, tipo convento marxista-leninista-maoísta. Mas funcional. Os companheiros de trabalho que vão fazer as traduções que depois corrigirei e a quem vou ensinar mais português, todos risonhos, simpáticos falando razoavelmente a língua de Camões. A camarada Bai e o camarada Fu estudaram português em Macau.
Na cave das Edições, cerimónia fúnebre muito simples em honra de Mao Zedong. Tudo a preto e branco, as cores do luto, mas com aparência de missa comunista. O retrato do revolucionário, as pessoas a curvarem-se diante da figura, muitas coroas de flores de papel, dois discursos longos de que não entendi uma palavra.
De tarde, visita ao Palácio de Verão.
Um estupendo conjunto de construções no estilo tradicional chinês, não muito antigo — parece que é tudo dos séculos XVIII e sobretudo XIX – junto a um belo lago, com pavilhões, torreões, pagodes e, ao fundo, as montanhas a oeste da cidade.
Hei-de voltar muitas vezes ao Palácio de Verão, não fica longe do Hotel da Amizade, talvez uns cinco quilómetros, e hoje vi apenas de relance, com os olhos. Eu quero conhecer, quero começar a meter a China dentro de mim.
Viajei muito pela China, da Mongólia Interior a Yunnan, de Sichuan a Macau, diluí-me pelo país, como gosto de fazer. Também aprendi alguns chinês

Pequim, 14 de Setembro de 1977

O presidente Mao Zedong repousa no mausoléu que acabou de ser inaugurado, a sul da praça Tian’anmen.
Fui ver o corpo do homem que mais contribuiu para mudar a face da China.
Grupos compactos de pessoas, organizadas por entidades de trabalho, filas silenciosas de soldados, os rostos parados, compungidos, aguardavam a vez de entrar na construção de mármore, rectangular, nem bonita, nem feia onde jaz Mao.
Juntei-me à fila ininterrupta que avançava num lento ritmo fúnebre. Lá dentro, na vasta antecâmara, uma grande estátua também de mármore de Mao Zedong, sentado, branco, irradiando a altivez e segurança do melhor período da sua vida. Logo depois o salão com o sarcófago de cristal e Mao coberto pela bandeira comunista, e ele, velho, encarquilhado, uma cara que parece de cera.
À minha frente, o peruano Guillermo Delly, que pertence àquele grupo maoísta do Sendero Luminoso chegado também agora à China e que trabalha comigo nas Edições de Pequim — ele no semanário Beijing Zhoubao, o que dá Pekin Informe na língua de Cervantes –, pois o Guillermo levantou o braço e, de punho fechado, saudou Mao Zedong.
Em 1970, já no ocaso dos dias mas ainda todo-poderoso, o grande timoneiro confessou numa entrevista a Edgar Snow que entre as multidões imensas que gritavam Mao Zhuqi Wansui!, ou seja “Viva o Presidente Mao”, um terço das pessoas eram sinceras, outro terço fazia o que via os outros  fazer e o último terço era hipócrita. Em qual destes grupos entrará Guillermo Delly? E eu, que não ergui punho nenhum nem nunca gritei Mao Zhuqi Wansui?

Leave a Reply