Sete contos para uma cidade inventada

É amanhã apresentado em Portugal o livro de contos “Genti di Macau”, de Luciana Leitão. A obra recebe o nome em patuá. A realidade local enformou o primeiro trabalho literário da jornalista que escreveu sete narrativas organizadas segundo as diferentes comunidades que vivem em Macau.

Maria Caetano

Chegou a Macau a 28 de Fevereiro de 2007. A experiência de mais de dois anos de vida no território ficou já devidamente assinalada num pequeno livro de contos – sete ao todo – que é amanhã lançado na Livraria Barata, em Lisboa.
“Genti de Macau” é um conjunto de pequenas histórias de ficção que se organiza segundo as várias comunidades que habitam hoje a RAEM, com ilustração de João Magalhães e prefácio pelo tradutor e poeta Yao Jingming. O livro é concebido intencionalmente para uma leitura rápida, e a autora, Luciana Leitão, não tem a pretensão de descrever a realidade. Isso é o que vem fazendo no âmbito da profissão que tem, como jornalista, colaborando com vários órgãos de informação locais. Nas horas vagas, dispôs-se a imaginar e a registar, pela primeira vez, novos enredos – que, recebendo cenários e circunstâncias reconhecíveis, dão conta de uma Macau paralela.
“Gosto de inventar personagens e que elas tenham vida própria, pensem determinadas coisas. No fundo entrar em outros mundos e também libertar-me um pouco de mim própria e fantasiar um pouco”, afirma a autora perante a primeira obra publicada, resultado de uma vontade recentemente desperta.
Formou-se em Direito, mas optou pelo jornalismo. Descobriu a técnica da notícia e o gosto pelo género da reportagem. Apurou-os. Mas quis por fim escrever sobre uma coisa que não há, criar. Foi um passo.
Macau, uma casa nova, criou disponibilidade para registar modos, palavras, texturas e cores diferentes das que conhecia antes, em Portugal, e cruzá-los com as obras da imaginação. “O livro é ficção, mas é uma ficção relativa. Em todos esses contos há algo que eu recolhi das reportagens que fui fazendo. Talvez muito mesmo. Em parte, também deve às pessoas com que me fui cruzando e conhecendo, mas muito tem a ver com as reportagens que fiz”, admite.

Das leis às letras

O jornalismo marcou o início da carreira profissional de Luciana Leitão. Após concluir a licenciatura, frequentou durante um ano o curso de formação profissional em jornalismo do CENJOR, em Portugal. Já não quis seguir os códigos e processos que eventualmente lhe estariam destinados. Realizou um estágio profissional no Diário de Notícias, com o qual passou a colaborar mais tarde como correspondente local para a zona de Loures e Odivelas. Começou também nessa altura a colaborar com as publicações África Today e Jornal de África.
A certa altura, recordou-se dos tempos passados em Erasmus, em Itália. “É um cliché, mas é verdade – o bichinho, aquela vontade de estar fora do país, ficou lá”. E, para cúmulo, falaram-lhe de Macau. “Falaram-me dessa possibilidade, de que havia uma vaga num jornal em Macau. Eu fiquei logo entusiasmada com essa ideia. Entretanto, vim a saber que essa vaga já tinha sido preenchida e desisti de Macau por uns tempos”, lembra.
Mas não se coibiu de enviar uma candidatura espontânea para um outro jornal – este que lê. “Horas depois de ter enviado o e-mail recebi uma resposta.” Duas semanas trouxeram uma entrevista de trabalho. Outras duas, uma viagem até cá.
“Estava numa fase da carreira em que tudo se estava a formar e tinha medo de assentar totalmente em Portugal.” Além disso, tinha uma amiga a trabalhar em Macau. “A ideia já estava na minha cabeça”, conta.
Por cá, trabalhou no PONTO FINAL, no suplemento em português do Tai Chung Pou, e mais tarde, após fusão da publicação, no Hoje Macau. “Quando cheguei, fiz muita política. Teve um pouco a ver com a minha formação de base, o Direito. Acho que é um tema interessante e que é importante para quem quer conhecer bem a realidade de Macau”, recorda. Mas o que mais a motivava era a reportagem. “Dá maior espaço para explorar a escrita. Há também muitos aspectos em Macau que, sobretudo para uma portuguesa que procura uma experiência fora de casa numa cultura diferente, seria uma pena não explorar.”
De tal forma que, para poder explorar mais o género, se aventurou em regime livre. Tornou-se freelancer. “Provavelmente, se estivesse em Portugal não faria esta opção.” As razões prendem-se com a insegurança no mercado de trabalho português. Situação diferente da que encontrou na RAEM. “Comecei a aperceber-me que o mercado funcionava e que talvez pudesse existir um espaço para freelancers”, diz.
A mudança trouxe mais tempo para frequentar um mestrado e para desenvolver outros projectos, nomeadamente, a escrita literária. “Com o facto de ter apurado o estilo da reportagem e de me ter apercebido que era o género de que mais gostava, comecei a perceber também que realmente gosto de escrever, e não necessariamente só sobre a realidade, seja ela qual for”, afirma Luciana.

Experiência marcada

O género escolhido para abrir a incursão pelos territórios de ficção foi o conto. Brevíssimo, exige tempo e medidas certos e é normalmente o teste dos novos autores. “À partida é um género complicado. É uma história bastante pequena com a qual é difícil construir uma personagem em que o autor e os leitores acreditem. Se calhar, num romance o processo é bastante mais fácil, porque há tempo e uma narrativa de talvez trezentas páginas que permitem construir uma personagem de outra maneira.”
Em “Genti di Macau” é, por isso, a acção que comanda a narrativa. “Não me debrucei tanto sobre a construção da personagem. Preocupei-me mais em construir uma história.” Frases curtas e um ritmo rápido dirigem os sete pequenos contos onde as personagens têm grande parte das vezes discurso directo e narram em direcção a finais abertos. “Eu não gosto de contos que sejam moralistas”, afirma, admitindo que este género literário se presta muitas vezes a isso.
Da mesma forma, a autora admite ter tido reservas na hora de fechar as personagens em características que poderiam ser consideradas redutoras. “Eu sou portuguesa. O meu contexto é esse e vim para Macau há dois anos. Não tenho pretensões de querer conhecer perfeitamente a comunidade chinesa, quando eu ainda por cima nem sequer falo a língua. O mesmo com as restantes comunidades, com quem o contacto que tenho é muito superficial. Nesse aspecto, tive algum pudor em escrever sobre elas, porque não queria passar a mensagem de que ‘eles são assim ou assado’”, revela. “É a minha interpretação de como estas comunidades interagem entre si.”
“O conto também é uma salvaguarda. Se encontramos dificuldades em prender um leitor com uma história tão pequena, por outro lado também não permite aprofundar muito. Fica só a ideia”, conta quem não acredita em versões definitivas.
Luciana Leitão tem também consciência de que não há hoje uma nova ficção de Macau em língua portuguesa e que qualquer nova produção literária local corre o risco de ser entendida como uma introdução ao território por quem está fora. “É uma falta que se nota”, admite. “Agora, o meu objectivo quando escrevi este livro não foi preencher nenhuma lacuna”, ressalva.
“É um livro sobre Macau porque estou em Macau, que é uma experiência da qual estou a gostar imenso. De alguma maneira quis marcar esta experiência através de um livro. Fica o livro”, afirma.

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