Naquela casa ninguém se entende

Foi a primeira reunião ‘a sério’ da nova legislatura e presumia-se que fosse relativamente pacífica. Mas a Assembleia já não é o que era. Há muitos deputados novos e as conversas de bastidores parecem ter perdido um certo efeito persuasivo entre o grupo dos mais antigos. Foi necessária uma tarde inteira para aprovar a constituição e composição das comissões do órgão legislativo. Ho Iat Seng, o vice-presidente, foi o único ausente. Lau Cheok Va teve uma estreia difícil no lugar outrora ocupado por Susana Chou.

Isabel Castro

Entrou pela ‘porta grande’ – ao conquistar o lugar de vice-presidente apesar da sua inexperiência na Assembleia Legislativa (AL) -, e deixa a sua prestação marcada, desde já, por um facto que é, no mínimo, surpreendente. No segundo plenário de arrumação da casa (o primeiro foi no dia 16 e serviu para eleger a Mesa), Ho Iat Seng faltou.
Desconhecem-se as razões da falha do vice-presidente, mas a sua cadeira vazia adquiriu particular significado, num plenário marcado por várias confusões políticas e regimentais. E que constituiu uma estreia difícil para Lau Cheok Va, o novo presidente da AL.
A reunião de ontem tinha na ordem do dia três pontos, todos eles relacionados com a organização interna do hemiciclo. A composição da Comissão de Regimento e Mandatos – o primeiro assunto a ser colocado à apreciação dos deputado – resolveu-se em dois minutos, já que ninguém mostrou ter dúvidas.
Ainda assim, a votação da deliberação em causa não correu bem à primeira tentativa. O sistema electrónico da AL implica que o deputado tenha de carregar em dois botões para que o seu voto seja considerado válido: começa por premir um que acusa a sua presença na sala e depois pressiona aquele que indica o seu sentido de voto. Ora, dados os muitos estreantes nas andanças legislativas, foi preciso explicar como funcionam os botões e repetir a votação.
Ao contrário do que é costume, a AL não distribuiu pelos órgãos de comunicação social as propostas em análise na reunião, pelo que se desconhecem quais os deputados que integram a comissão de Regimento e Mandatos.

Porquê estas e não outras?

Chegados ao segundo ponto da ordem do dia, começaram então a surgir as primeiras divergências políticas, às quais se juntaram dúvidas sobre as normas regimentais. Diz o livro de regras de funcionamento da Assembleia que compete à Mesa apresentar uma proposta em relação às comissões permanentes do órgão legislativo e à sua composição. O regimento dita ainda que este assunto tenha de ficar decidido na segunda reunião plenária da legislatura – ou seja, de ontem não podia passar.
As três comissões permanentes não causaram problemas de maior – os três deputados que não concordavam com a distribuição feita pela Mesa pediram a sua relocalização e o pedido foi aceite.
Acontece que a deliberação sobre estas comissões de carácter obrigatório incluía ainda disposições sobre outras três comissões, estas de índole facultativa, que se prendem com as competências de fiscalização da acção governativa da AL. Dão pelo nome de comissões de acompanhamento e são uma novidade no hemiciclo.
Inspirada nas áreas de análise das comissões eventuais em funcionamento na anterior legislatura, a Mesa sugeriu comissões de acompanhamento para os Assuntos de Terras e Concessões Públicas, Assuntos de Finanças Públicas e Assuntos da Administração Pública. Têm exactamente a mesma composição das comissões permanentes, tanto ao nível do número de membros como dos deputados escolhidos, e igual duração – quatro anos, o tempo da legislatura.
Cheang Chi Keong foi o primeiro deputado a manifestar o seu desagrado em relação à proposta da Mesa. E o primeiro a denunciar que as tradicionais conversas preparatórias mantidas longe da sala de plenário não estão a funcionar. Pelo menos para já.
O deputado entende que os assuntos abrangidos pelas três comissões de acompanhamento “não são aqueles que mais preocupam a população”. Por isso, propôs que os dois temas contidos na mesma deliberação – comissões permanentes e comissões de acompanhamento – fossem votados em separado. A proposta acabaria por ser aceite. Mas muito tempo depois.

Horas de desassossego

A delonga prendeu-se com a habitual necessidade de toda a gente – ou quase – fazer uso do seu direito à palavra. Uns intervieram para reforçar a teoria de Cheang Chi Keong (os mais interventivos foram Chan Chak Mo e Cheung Lup Kwan); outros contrariaram a tese, defendendo a proposta da mesa (Kwan Tsui Hang foi a primeira a fazê-lo). A verdade é que, bem vistas as coisas, parecia ser consensual a necessidade de criação das comissões de acompanhamento: as divergências residiam no método e na oportunidade de constituição destes grupos de trabalho.
A intuição de Leonel Alves, que advoga a especialização das comissões, diz-lhe que este pode ser “um bom início, uma boa experiência”. Porém, o deputado entende que estas comissões de acompanhamento deveriam ter a duração de uma sessão legislativa (um ano) e não da legislatura (quatro anos). “Assim podemos experimentar este modelo e não estarmos a ele agarrados durante quatro anos.” Proposta de igual teor viria a fazer também Kou Hoi In, que por sinal faz parte da Mesa responsável pela sugestão inicial.
Mais uns quantos deputados quiseram falar, quer para pedir a separação da deliberação, quer para fazer interpretações ou perguntas sobre o regimento. A esta altura dos acontecimentos, já havia deputados de pé a conversar com colegas, folhas a serem passadas de mão em mão e cópias do regimento de um lado para o outro. O estreante Tong Io Cheng ainda tentou pôr ordem na sala – Lau Cheok Va estava, nitidamente, ‘aos papéis’ – e sugeriu que se votasse a proposta da Mesa. “Se for reprovada, discute-se outra solução.”
A sugestão do nomeado pelo Chefe do Executivo não teve efeitos práticos mas, na mesma altura, vários deputados recordaram ao presidente da Assembleia que estava na hora da pausa para o lanche. “Vamos fazer um intervalo para discutir e tentar encontrar uma solução”, lançou Cheang Chi Keong. E a pausa aconteceu. Estava decorridas três horas de reunião.
Regressados de um intervalo pouco produtivo, os deputados continuaram sem se entender. E sem sossegar, com uma azáfama pouco vulgar no plenário. Lá se chegou à conclusão de que era melhor separar, na deliberação, comissões permanentes das de acompanhamento, pelo que se fez nova pausa para redigir as alterações. Antes do segundo interregno do dia, Kou Hoi In ainda alertou para o facto de alguns deputados se estarem a guiar por um regimento desactualizado, o que estava a contribuir para a confusão.

Os cartões de visita

De volta ao plenário, Leonel Alves tomou a iniciativa de apresentar a nova redacção da deliberação, ponto por ponto. Manteve-se tudo tal como estava, incluindo os quatro anos de duração das comissões de acompanhamento. A única diferença foi mesmo a separação dos dois tipos de grupos de trabalho que a proposta contemplava.
Houve ainda quem tivesse tentado adiar a votação da criação das comissões de acompanhamento para melhor altura (Tsui Wai Kwan e Tong Io Cheng fizeram a sugestão), e o particularmente interventivo Vong Hin Fai (a sua primeira legislatura, entre 2001 e 2005, ficou marcada por uma postura discreta) deu a entender que era necessário votar em primeiro lugar a proposta da Mesa, e só depois a apresentada por Leonel Alves.
O ex-membro da Mesa (Alves deixou o seu lugar de 1º secretário nesta nova legislatura) esclareceu que a proposta que apresentou não é materialmente sua, mas sim da Mesa. “Eu apenas contribuí formalmente, só detalhei”, vincou o deputado perante o plenário e um cada-vez-mais-à-toa Lau Cheok Va.
A atestar que há coisas que, ainda assim, nunca mudam, as intervenções de Chan Chak Mo e Fong Chi Keong: à semelhança de outros deputados, defenderam a alteração da designação das comissões de acompanhamento, uma vez que o termo ‘acompanhamento’ não constava da deliberação.
Chan e Fong mostraram-se preocupados com as eventuais confusões que a falta da palavra poderia causar. No caso da comissão para os Assuntos de Terras e Concessões Públicas, disse um deles, “as pessoas ainda pensam que somos nós que decidimos, e nós não somos o Governo”. Ambos entendem que a designação deve ser precisa para evitar malentendidos nos cartões de visita. O plenário tratou de garantir que não haverá esse tipo de equívocos.

Memórias de Susana

Quatro horas e 16 minutos depois de iniciado o plenário, avançou-se finalmente para a votação da deliberação. Resultado? A proposta passou sem problemas no que toca às comissões permanentes, mas na parte das comissões de acompanhamento o plenário dividiu-se. Ainda assim, a ideia da Mesa foi aprovada, com 10 votos a favor, nove contra e seis abstenções, num esquema de maioria relativa.
Lau Cheok Va deu a deliberação como estando formalmente aprovada, mas eis que, quando o pior parecia já ter passado, se ouvem vozes de protesto. É que Kou Hoi In tinha posto o braço no ar para falar, pois queria que a sua proposta fosse apreciada. Além disso, alguns deputados não perceberam que a votação estava a decorrer e não premiram os botões. Como logo no início do plenário já se tinha repetido uma votação, houve quem tivesse pedido que se fizesse o mesmo.
Deu-se então uma das mais reveladoras intervenções da tarde, da autoria de Chan Chak Mo. “Quando estava na casa de banho”, confessou o deputado aos seus colegas, “lembrei-me de uma coisa. A presidente Susana Chou chamava a atenção dos deputados quando era para votar”. Dirigindo-se a Lau Cheok Va, num apelo à repetição da votação, o saudosista Chan explicou que “os deputados podiam estar a falar ou ao telefone” no momento em que se deu a votação.
Perante a hesitação de Lau Cheok Va, Leonel Alves falou para deixar bem claro que “quem não votou, paciência”. E mais. “Se a maioria dos deputados não concordar com o que aconteceu, podem juntar-se e apresentar uma proposta que extinga as comissões” de acompanhamento acabadas de aprovar.
Tong Io Cheng – que promete ser um deputado muito activo – usou da palavra para concordar com Alves e, logo em seguida, falou Ng Kuok Cheong, que tinha estado em silêncio durante todo o debate. O pró-democrata falou em nome da sua bancada alargada, para avisar Lau Cheok Va que, caso houvesse lugar a repetição da votação, os três deputados abandonariam o plenário.
Paul Chan Wai Chi acrescentou, na sua condição de debutante, que se prepara de modo a não ter de ir à casa de banho durante a votação, e aproveitou o ensejo para explicar que não se baralhou com os botões porque estudou as suas tarefas legislativas.
Cheang Chi Keong considerou o caso “lamentável”, assegurando que nos seus oito anos de experiência legislativa nunca viu “nada semelhante”. Mas mostrou-se compreensivo perante Lau Cheok Va: “É o seu primeiro plenário enquanto presidente, talvez estivesse nervoso. Alguns deputados ainda não tinham acabado de votar”.
Acabou por ser Leonel Alves a pôr fim à indecisão em torno da repetição da votação. “Presidiu exemplarmente à reunião. Todos sabem muito bem que sou muito amigo da antiga presidente Susana Chou, mas os hábitos que ela criou não são regimentais. O presidente colocou à votação.”
Lau aproveitou a deixa e passou para o último ponto da ordem do dia – a eleição de um membro para o Conselho Administrativo. Aqui, a concertação prévia funcionou – Tsui Wai Kwan foi eleito com 20 dos 28 votos possíveis. Ho Iat Seng perdeu um plenário único.

Leave a Reply