“A magia vive do segredo e da criatividade”, conta António Cardinal

Foi um dos mágicos mais requisitados na pujança da sua carreira. Aos 67 anos, António Cardinal, depois de uma passagem pelo Campeonato do Mundo de Magia, em Pequim, mostra-se desiludido com a pirataria que sucede na China, também no campo do ilusionismo.

Luciana Leitão

Como é que se corta uma mulher aos pedaços e ela continua inteira? Aos dez anos, António Cardinal andava em busca do mistério e da incógnita que ronda a mestria da magia. Investigou um pouco e rapidamente se apercebeu de que o sobrenatural não tem qualquer papel no ilusionismo. Mas não ficou desanimado. Ao invés, apaixonou-se pela ilusão que cria junto dos espectadores. De férias no território, depois de ter participado no Campeonato do Mundo, em Pequim, o ilusionista reformado – que actualmente co-organiza o festival MagicValongo contou a sua estória.
Não tem qualquer ligação à família circense Cardinali, mas foi o pai quem lhe transmitiu o interesse pelo ilusionismo. Sentiu-se fascinado pela busca de respostas. “Fui lendo, estudando e praticando”, conta.
Trabalhou durante quatro décadas na área da publicidade do Jornal de Notícias. Paralelamente, desenvolvia a sua actividade como ilusionista, chegando mesmo a escrever, durante 12 anos, artigos no diário sobre o assunto. “Estava bem cotado na altura – fui convidado para ir à televisão, cheguei a ser considerado o mágico do ano, fui ao Casino Estoril duas vezes e actuei em vários casinos de Portugal”, diz.
No exercício da actividade de mágico, António Cardinal procurava, sempre que possível, criar. E dar um cunho pessoal aos seus truques. “Não me limito a executar. Tenho de adaptá-los à minha personalidade”, observa. Até porque ao ilusionista cabe mais do que “despejar truques” – há que “conquistar o público”, procurando despertar o seu interesse.
À custa do seu toque pessoal, garantiu espectáculos em diferentes locais de Portugal, Canadá, EUA, Espanha, Tunísia e Alemanha.
Da prática em família à associação ao Clube Ilusionista de Fenianos foi um passo. “Este ano comemora 50 anos de actividade contínua. É o clube que está inscrito há mais tempo na Federação Internacional das Sociedades Mágicas (FISM)”, conta. Actualmente, António Cardinal é o seu presidente.
Aos poucos, foi-se apercebendo de que era necessário fazer mais. Surgiram conferências, a participação em certames como o Festival Internacional da Figueira da Foz e o Festival do Porto. E faz parte, juntamente com três colegas, da organização do MagicValongo – um evento de que António Cardinal se orgulha, tal é a sua actual pujança. “Já alcançou um estatuto internacional”, diz, orgulhoso.
Aliás, ao MagicValongo vão nomes de reconhecida fama garantindo ao festival uma dimensão internacional. “Aceitam os nossos convites, actuam para os portugueses, com preços suportáveis para a organização”, declara. Inclusivamente, à conta desta reputação internacional, surgiu o convite por parte do presidente do FISM para participar – na qualidade de espectador – no Campeonato do Mundo de Pequim.

O campeonato mundial em Pequim

Acabado de regressar do Campeonato do Mundo de Magia, em Pequim, no qual participou como espectador, António Cardinal faz dele um balanço positivo. “A China portou-se muito bem, e esteve representada ao nível de dois ministros”, afirma.
Quanto à magia no território e na China, António Cardinal – que já há vários anos se desloca a Macau para visitar o filho – fica desapontado. “Em Pequim, ocorreu um incidente significativo. Um dos ilusionistas tinha criado uma mesa que flutua. Qual não foi a surpresa dele quando percebeu que copiaram o modelo e estavam ali disponíveis dezenas de mesas iguais às dele. Recorreu à Federação Internacional de Sociedades Mágicas (FISM) e pediu que parassem com aquilo”, conta.
Este é apenas um entre vários incidentes de que se recorda terem sucedido na China – ao longo dos vários anos por que tem passado pela região -, algo que, “em Portugal, para já, ainda não acontece”. Sente-se por isso desanimado, tendo em conta que “a magia vive do segredo e da criatividade”.
Em Macau, mantém contactos com as associações locais de mágicos. E, avança, está em negociações para que se organize uma palestra, cuja data está por confirmar. Algo que resultou da sua passagem pelo Campeonato do Mundo, em Pequim.

Incidentes para recordar

Ao pensar na sua carreira, recorda-se de um incidente que ocorreu, enquanto se encontrava em palco, com um familiar. Numa das actuações, algumas gotas de sangue caíram do nariz, acabando por sujar o smoking branco que um deles trazia vestido. “Ficaram loucos. À noite no hotel, faziam filas para consultas”, recorda.
Parece que os espectadores tinham interpretado tal facto como um indício de que ambos gozariam do “poder de adivinhação”. Ao explicar que não era verdade, era visível a desilusão na cara dos interlocutores.
Esse número de “mentalismo” – truques em que “o mágico faz uma previsão, adivinha um número ou um pensamento” – era um entre vários que António possuía no seu reportório. E que, ao longo da sua carreira, foram responsáveis pela fama alcançada. “Também costumava fazer um número de grande sucesso nos casinos – uma grande ilusão, em que cortava em três uma mulher; o seu corpo era atravessado por lâminas e depois por lâmpadas fluorescentes”, acrescenta.
Mas o episódio “caricato” acabou por ser protagonizado por um agente da Polícia Judiciária. “Foi no Casino de Espinho. Atava a minha ‘partner’, que depois teria de entrar numa cabine. De seguida, escolhia um espectador e este tinha de entrar na cabine. Posteriormente, o convidado tinha de reaparecer, sem casaco. Ao mesmo tempo, a ‘partner’ continuava atada, mas tinha o casaco do espectador vestido”, diz, explicando um dos números que o tornou mais famoso no circuito dos mágicos.
Ora, numa dessas ocasiões, o espectador recusou-se a sair. “Eu dizia-lhe para sair e ele não queria”, recorda. Já tinham passado mais do que os quatro ou cinco segundos de praxe, quando o espectador lhe disse. “Não posso. Sou da Polícia Judiciária e tenho a pistola à mostra. Se sair assim, fico numa situação complicada”, acrescenta.
Com o número já estragado, António não teve outro remédio se não “retirar a ‘partner’ da cabine e deixá-lo sossegado”. Durou quatro ou cinco minutos, que, em palco, acabaram por “parecer uma eternidade”.
Sobre os truques por detrás da magia, António Cardinal não se descose. “Nunca desvendamos”, afirma. Porque o que conta é “manter o interesse do público”. Não é que se queira transmitir aos espectadores a ideia de que os mágicos são “seres superiores, abençoados pelo sobrenatural”, mas, pelo menos, que se perceba que o ilusionismo é uma arte. “Queremos que o público perceba que há truque. Se conseguirmos transmitir magia e encantamento, ainda melhor”, conta.
Ao longo da sua carreira, nunca se apercebeu de que alguém – dentre os espectadores – tenha desvendado o mistério de um número. Mas, acrescenta, “corre-se sempre o risco de, no público, se encontrar um ilusionista”.
Actualmente reformado, aos 67 anos, António Cardinal afirma que “há que ser leve em palco” – algo que dificilmente sucede quando se tem 60 anos. “Continuo, porém, na organização de eventos e ligado ao Clube de Finianos, além de organizar o MagicValongo”, afirma.

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