Matteo Ricci, os jesuítas e a escravatura em Macau 

Publicado a 5 de Agosto no portal SupChina, o artigo “Matteo Ricci and the slave trade that conected Portugal with Macau”, da autoria do historiador norte-americano James Carter, aponta para a intervenção do missionário italiano num contexto de escravatura que terá contado no território com a conivência da Ordem dos Jesuítas, inclusive no resgate de escravos que fugiam para a China continental. O artigo não foi bem acolhido entre historiadores locais, que o acusam de falta de cientificidade e sensacionalismo.  

Sílvia Gonçalves

silviagoncalves.pontofinal@gmail.com

Matteo Ricci é historicamente reconhecido pela aproximação entre as civilizações europeia e chinesa, por fomentar o conhecimento mútuo entre culturas, nomeadamente num modelo de evangelização que primava pelo diálogo com o outro. Um artigo publicado na quarta-feira no portal SupChina, assinado por James Carter, historiador da Saint Joseph’s University, de Filadélfia, coloca o enfoque numa vertente menos conhecida do missionário jesuíta, que chegou a Macau a 7 de Agosto de 1582, a da sua ligação à escravatura no território, nomeadamente o papel que terá exercido no sistema de captura de escravos que fugiam para a China continental, e que seriam, de acordo com o mesmo autor, resgatados com o apoio dos jesuítas, que os devolviam à Administração Portuguesa. Remetido o artigo a alguns historiadores locais, estes questionaram a sua credibilidade científica. António Vasconcelos de Saldanha recusou discutir textos produzidos fora do seu meio académico, “alheios a critérios de cientificidade e crítica”; Tereza Sena alegou que o tema é colocado, no mesmo artigo, em termos “sensacionalistas e a-científicos”. O jesuíta Luís Sequeira fala de uma leitura anglo-saxónica de um tema onde a actuação de Portugal não pode ser comparável com a de outros povos europeus, na relação com aqueles que eram mantidos em cativeiro. 

A INSERÇÃO DE RICCI NUMA MACAU ALINHADA COM A ESCRAVATURA 

Partiu de Lisboa para Goa em 1578, o missionário italiano que um ano antes se tinha voluntariado para integrar as missões de evangelização na Ásia. Em 1582, destacado para a missão jesuíta na China, Matteo Ricci chega a Macau, com o propósito de aprofundar o estudo da língua chinesa, e onde iniciaria a empreitada de compilar o primeiro dicionário de Português-Chinês. 

“A presença jesuíta na China é frequentemente apresentada como um modelo de respeito cultural mútuo, algo escasso nos dias de hoje. E é verdade que os jesuítas se envolveram com a cultura chinesa muito mais genuinamente – aprendendo a língua e aceitando aspectos da cultura Chinesa – do que outras ordens católicas”, escreve James Carter no artigo “Matteo Ricci and the slave trade that connected Portugal with Macau [Matteo Ricci e o comércio de escravos que ligava Portugal a Macau]”. Prossegue o historiador americano, assinalando que “infelizmente, a história desse encontro inicial está repleta de um dos aspectos mais vergonhosos dos impérios comerciais globais que trouxeram os europeus ao redor do mundo: a escravidão”. 

James Carter reporta ao período em que Matteo Ricci chega a Macau socorrendo-se da obra “The Memory Palace of Matteo Ricci”, de Jonathan Spence, conhecido sinólogo e historiador da Universidade de Yale, onde é referido que, das cerca de 10 mil pessoas que viviam nessa altura em Macau, entre 400 e 500 eram portuguesas. “A Lisboa que Ricci havia deixado era um dos centros mundiais do comércio de escravos, e o navio português em que Matteo Ricci embarcou de Moçambique para Goa em 1578 transportava várias centenas de pessoas em cativeiro junto com a sua carga e, em Macau, a ordem jesuíta possuia escravos. Os africanos escravizados superavam o número de portugueses em Macau em talvez cinco para um: das 10.000 pessoas em Macau, quando Ricci chegou, talvez um quarto delas fosse escravizado”. 

Carter afirma, de seguida, que “a própria ordem dos Jesuítas escravizou africanos, tanto na Índia como em Macau. O próprio Ricci tinha ‘escravos negros’ a trabalhar para si em Macau”. Conta o historiador que alguns dos escravizados em Macau escapavam para a China continental, e que como os jesuítas estavam entre os poucos europeus que trabalhavam na China, “se tornaram elementos-chave no sistema de captura de fugitivos”. Carter cita depois Jonathan Spence, para descrever a extensão da “economia escrava” dentro e à volta de Macau, e o papel dos jesuítas nessa prática: “Ricci discutiu abertamente o seu papel activista na devolução de escravos fugitivos na China às autoridades portuguesas em Macau”. E prossegue, ainda nas palavras de Jonathan Spence: “A táctica dos jesuítas era tentar identificar os escravos fugitivos que haviam sido baptizados como cristãos e convencê-los de que seria melhor a longo prazo retornar para retomar as suas vidas no ambiente cristão de Macau, em vez de viverem a vida entre os chineses pagãos, especialmente porque os chineses, em todo o caso, também ‘os tratavam como escravos’”.  

James Carter assinala, no mesmo artigo, que o Sul da China, nomeadamente Cantão, foi sempre um centro de “racismo anti-negro na China”. E dá como exemplo a recente “demonização dos africanos em Guangzhou” no contexto da pandemia de Covid-19. 

O historiador não deixa de assinalar, contudo, o legado do missionário italiano e da Ordem dos Jesuítas: “O trabalho de Ricci e o dos outros primeiros jesuítas na China tiveram muitos grandes sucessos, com legados que incluem uma geração de chineses católicos, monumentos como as grandes igrejas de Pequim e outras cidades e artefactos como o mapa de Ricci, de 1602, desenhado em colaboração com cartógrafos chineses, sendo esse o primeiro mapa a combinar conhecimento e tecnologia de mapeamento chinês e europeu. O domínio de Ricci da língua chinesa e o respeito pelas tradições literárias e culturais chinesas são dignos da nossa admiração”. 

Na conclusão do artigo, Carter assume que será demasiado responsabilizar jesuítas e portugueses de Macau “pelo racismo anti-negro na China”, no entanto, diz ser necessário assinalar que “quando Ricci – considerado por muitos como o exemplo da empatia transcultural – entrou pela primeira vez no que é hoje a China, ele o fez como parte de um sistema de racismo institucional e cultural que perdurou ao longo dos séculos”.

TEXTO ALHEIO “A CRITÉRIOS DE CIENTIFICIDADE E CRÍTICA”

Confrontado com o artigo de James Carter, António Vasconcelos de Saldanha, historiador e professor na Universidade de Macau, e membro do Instituto Ricci de Macau, remeteu por email o seguinte comentário: “Tenho o maior gosto em discutir ideias e factos no âmbito do meio académico a que pertenço. Recuso-me a discutir textos que são produzidos fora desse âmbito e alheios a critérios de cientificidade e crítica, porventura inspirados por causas e modas que nada têm a ver com o fazer História e que só prejudicam o seu entendimento. O facto do autor, um reputado sinólogo e especialista em China Moderna, ser Professor da Saint Joseph’s University, Philadelphia USA, não me impressiona nem adianta para a questão; tem o único benefício de esclarecer no que respeita ao nível dos historiadores que naquela Universidade se abalançam a escrevinhar sobre história de Macau, ou dos Jesuítas ou de Portugal”. 

ASSUNTO COLOCADO EM “TERMOS SENSACIONALISTAS E A-CIENTÍFICOS”

Também Tereza Sena, depois de ler o mesmo artigo do historiador americano disse, numa declaração enviada por email, “não comentar este assunto fora do contexto académico, no qual, aliás, nunca se poderia colocar nos termos sensacionalistas e a-científicos como aqui é apresentado”. 

A historiadora, investigadora no Instituto Politécnico de Macau, prossegue da seguinte forma: “Porque a História não se julga, explica-se, ou pelo menos tenta-se explicar, para que constitua um elemento de reflexão, de aprendizagem, de evocação até. Para que com ela se entendam e se melhorem as relações entre os homens e se aprenda como foram evoluindo ao longo dos séculos, simplisticamente falando. Com todas as violências, atrocidades, injustiças, seguramente condenáveis aos olhos de hoje, como muito do que hoje fazemos virá a ser incompreendido e condenado no futuro. É que se houve esclavagismo, também houve abolicionismo. Qualquer académico digno desse nome repudia o reducionismo histórico, a recorrência histórica e a utilização da História como argumento legitimador de intervenção no presente. As lutas do presente, fazem-se no presente, com o que a História nos ensina, ou devia ensinar”.

Questionada depois sobre a necessidade de revisão da historiografia elaborada no século XX, onde é frequente alguma higienização da escravatura e da acção das grandes potências no período da expansão marítima e comercial europeia, Tereza Sena fala da revisão contínua de uma análise que é sempre construída à luz do seu tempo. “Toda a historiografia é constantemente revista, a história é escrita por homens e nós temos o olhar presente, embora obviamente nos seja pedida objectividade, o que não acontece neste artigo [de James Carter]. A historiografia é sempre revista e é revista com a mentalidade que nós temos e conforme vamos evoluindo. E há histórias da escravatura perfeitamente bem feitas e ninguém está a desculpabilizar. Mas, lá está, essas coisas são analizadas nos fóruns académicos, não podem ser trazidas para a opinião pública porque as pessoas não têm a utensilagem mental, não têm a epistemologia para compreender essas coisas”. 

OS PORTUGUESES E OS OUTROS, NA RELAÇÃO COM OS POVOS SUBJUGADOS

Para Luís Sequeira é necessário estabelecer uma diferença na forma como os portugueses se relacionaram com os povos colonizados, que o sacerdote jesuíta diz ter sido muito diferente daquela que se verificou no contexto anglo-saxónico. “Não há nenhuma civilização, dentro dos grandes impérios que tiveram essas situações de colonialismo, com a perspectiva portuguesa, que em todos os sítios criou comunidades mistas. O que significa que, objectivamente, há diferenças, há uma relação de sangue. Os portugueses, embora com os seus exageros, construíram uma realidade que nenhum outro tem. Há mestiços seja no Brasil, seja em Angola, Moçambique, em Timor, Macau, na Índia, há essa simbiose de raças. O que por si mesmo tem uma relação, nesta dimensão de povos, que não pode ser falada da mesma maneira que o tipo anglo-saxónico, com coisas que aconteceram na América do Norte ou em Inglaterra”. 

Entende, por isso, o jesuíta que “há diferenças a fazer na relação de povos, mesmo no contexto de uma realidade que é crítica. Inclusive, o primeiro país a deixar a escravatura na Europa foi Portugal”. O fundador e antigo director do Instituto Ricci de Macau questiona a relação estabelecida por James Carter e Jonathan Spence entre a Ordem dos Jesuítas e a escravatura. “Focalizar a Companhia de Jesus na China através da escravatura, ultrapassa-me um pouco, não tenho um estudo aprofundado sobre isso. Mas até que ponto estamos a ser suficientemente objectivos na análise de uma situação onde fundamentalmente vejo diferenças entre povos”, questiona o sacerdote. 

Luís Sequeira enquadra a acção dos jesuítas numa realidade historicamente situada, que não pode, defende, equiparar-se à intervenção ocorrida em solo americano. “Estar de uma maneira laical a dizer que eles [jesuítas] escravizaram, eu tenho muita dificuldade nessa maneira de abordar a questão. Que tenham aceitado dentro do contexto dos parâmetros da sociedade, pronto, digo que sim, e tem o seu quê de criticável e necessidade, em termos civilizacionais, de melhorar. Agora, falar de escravos à maneira norte-americana, tenho mais dificuldade nisso, porque não me parece ser esse o caminho e a própria realidade”. 

Sobre a realidade descrita pelos dois historiadores americanos, de que os jesuítas terão exercido um papel no sistema de captura de escravos que fugiam para a China continental, Luís Sequeira justifica a mesma acção com a necessidade de proteger esses fugitivos de um contexto ainda mais adverso. “Coloco ao contrário o argumento, que ele [James Carter] também menciona. Veja hoje a dificuldade que os chineses têm de aceitar os africanos, está a imaginar naquele tempo, com os requintes do imperador e da hierarquia social, que um africano vá para dentro da China e esteja bem? Até que ponto voltar [a Macau] não seria pôr um bocadinho de sensatez nessa relação de povos”. 

O sacerdote considera James Carter “muito mais agressivo” na leitura que faz da intervenção jesuíta da época, ao colocar na análise os conceitos de racismo e escravatura. “Não sei se não há aí um colocar exacerbado, até com os tempos actuais, com o que está a acontecer nos Estados Unidos, a colocar com essa mesma agressividade a análise à situação”. 

O debate global em torno do racismo e da escravatura praticada durante séculos pelas potências europeias tem resultado, um pouco por todo o mundo, em gestos como o derrube de estátuas, no espaço público, de figuras associadas ao tráfico negreiro e às atrocidades cometidas no âmbito da expansão europeia. Um debate alavancado pelo movimento “Black Lives Matter”, que encontrou novo fôlego depois do assassinato, a 25 de Maio, do afro-americano George Floyd, às mãos de um agente da polícia norte-americana, e que desencadeou protestos e uma indignação funda a uma escala planetária. 

 

 

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