
Aurora Oliveira viveu em Macau entre 1940 e 1947 e lembra-se de tudo o que nessa altura aqui viveu. O que não esperava era reviver esse período ao ler “A Amante do Governador”, de José Rodrigues dos Santos. Emocionou-se, como conta ao PONTO FINAL, e revela que o que ali leu, tirando pormenores, é “absolutamente verdadeiro e não há qualquer exagero”.
João Paulo Meneses
Aurora Oliveira viveu em Macau sete anos – os suficientes para fazer de Macau a cidade do seu coração. É que não foram sete anos quaisquer: foram os anos da ocupação japonesa, a partir de 1940, que a marcaram para toda a vida, tinha ela 14 anos. O que Aurora não esperava era reviver esses momentos no último livro de José Rodrigues dos Santos, “A Amante do Governador”. “Emocionei-me, francamente, ao ler este livro. Foi o ressuscitar de lembranças, de alegrias, de amizades, de medos, aventuras e tragédias inimagináveis”, conta ao PONTO FINAL.
“[o governador] Artur levantou a cabeça e constatou que de facto havia ali vários cadáveres estendidos pelo chão, dois aqui, um ali, três acolá. (…) As pessoas caminhavam sem rumo aparente, silenciosas e indiferentes aos corpos que jaziam no passeio, os esgares sonolentos e os movimentos fracos e lânguidos. Tentavam andar mas já mal se arrastavam”. (“A Amante do Governador”)

Na conversa com o PONTO FINAL, Aurora Oliveira recorda “os corpos ao longo das ruas, de manhã cedo, quando íamos para as aulas, esventrados e sem os trapos que iriam proteger outros miseráveis” e, entre “as muitas situações que me aterrorizaram”, destaca também “o carro dos correios que eu, curiosa, com mais duas amigas, fui espreitar, e o que vimos foi horrível, um montão de corpos, que, soubemos mais tarde, iriam num batelão para a ilha da Taipa”.
Aurora lembra-se também da “arrogância e constante ameaça dos japoneses, o medo dos bombardeamentos norte-americanos, que foram quatro, a fuga para os abrigos das Portas do Cerco que, quando a maré estava cheia, ficavam alagados, bastante alagados, com mais de meio metro de altura, nadando as ratazanas furiosamente à nossa volta”.
“«Acho que no dia em que conquistar Macau virei aqui instalar-me.» A vontade de Artur ao ouvir esta evidente provocação foi pôr o militar japonês [Coronel Sawa] imediatamente na rua, a exemplo do que fizera semanas antes com o seu adjunto. Como se atrevia o homenzinho a afrontá-lo daquela maneira? Mas o português sabia que se encontrava numa posição de extrema vulnerabilidade e que qualquer manifestação impetuosa de orgulho teria consequências desastrosas para a colónia que governava”. (“A Amante do Governador”)
E por falar nos japoneses, Aurora Oliveira conta que se lembra “perfeitamente do feroz Coronel Sawa, que todos os dias passava nas Portas do Cerco com os seus guarda-costas, colocados um de cada lado, nos estribos do carro, algumas vezes acompanhado da sua concubina chinesa, que o entregou aos norte-americanos em Cantão, quando a guerra terminou. Era uma espia”.

Falta de comida e a horta do jardim
Mais memórias dos sete anos passados em Macau (1940-1947): “Nas ruas circulava-se normalmente, embora nas Portas do Cerco houvesse com frequência escaramuças quer entre chineses e japoneses quer entre piratas rivais”.
“Os japoneses tinham interrompido os abastecimentos alimentares por via terrestre (…) e pelos vistos haviam imposto um verdadeiro bloqueio marítimo à colónia portuguesa, como se a pusessem de quarentena. A realidade impôs-se ao espírito do governador. «Querem vencer-nos pela fome»”. (“A Amante do Governador”)
E comida? “Claro que havia falta de comida; só havia arroz e de má qualidade, algum do qual a minha mãe habilidosamente transformava em farinha e inventava receitas. Como éramos uma família de seis elementos, cabiam-nos mensalmente 90 quilos”.
Para criar alternativas ao arroz, “transformou-se o jardim em horta, plantando tomate, e batata doce, cuja rama também se aproveitava para evitar o beri-beri que matou muitos dos pobres soldados moçambicanos, a quem só davam milho. A nossa fruta era só tomate, que recheávamos com jagra (melaço). Na horta, em pequenos galinheiros, criávamos galinhas e patos, que faziam de nós grandes privilegiados…”.
Naquela altura, como antes e depois, a comunidade portuguesa “era pequeníssima e, mesmo juntando todos os europeus, não atingia talvez 1% em relação aos chineses”. Aurora recorda-se que “convivíamos civilizadamente, havia encontros amigáveis e os macaenses eram afáveis e aceitavam-nos irmãmente, fazendo, portanto, uma vida normal com jogos de ping-pong, ténis e natação”.

“Vivi intensamente esta aventura”
A família Oliveira (pais e quatro filhos, sendo Aurora a mais velha) viajou para Macau em 1940, já em plena guerra na Europa. O pai, militar, fora colocado nas Portas do Cerco, mas a decisão da família ir toda para Macau “deve-se à minha mãe que, mulher culta e inteligente, reconheceu que em Portugal a vida seria difícil” em plena Segunda Guerra Mundial… “Os medos vieram depois”. Aurora lembra-se que, “para lá chegar, demorámos dois meses. Foi uma atribulada viagem e chegámos a Macau saudados por um violento tufão”. “Eu tinha 14 anos e vivi intensamente esta aventura. Estivemos em Macau sete anos, que me marcaram para toda a vida”.
E porque regressaram quando a situação tinha acalmado? “Creio que foi receio dos meus pais, estando as filhas em idade casadoira, o que lhes poderia acontecer se ficassem por lá, como aconteceu a algumas”. Aurora Oliveira regressou a Macau apenas uma vez, em 1987 “e comovi-me tanto quando, no jetfoil, vi Macau, que cheguei irreconhecível devido a uma alergia emocional”.

José Rodrigues dos Santos agradece a Aurora
Aurora gostou tanto do livro, que pediu para que fosse enviado um email a José Rodrigues dos Santos: “Voltei a ser a adolescente que nas Portas do Cerco via passar o cruel Coronel Sawa com a sua concubina e guarda-costas. Tantas recordações, tantos medos. Obrigada por ter relatado com tanta verdade a guerra que Macau sofreu… e ainda não disse tudo sobre esta dolorosa época”.
José Rodrigues dos Santos respondeu, via PONTO FINAL: “O email que a senhora Aurora me enviou deixou-me muito surpreendido, pois é muito difícil encontrar pessoas que viveram aquele tempo e que mantêm as memórias intactas. São verdadeiras testemunhas da História e é fundamental que os seus relatos fiquem registados para passarem a pertencer à memória coletiva e assim não se apaguem”.

O autor lembra, como já tinha dito a este jornal, que “todas as personagens principais de ‘A Amante do Governador’ são inspiradas em pessoas verdadeiras, mas o mais desconcertante na descrição da senhora Aurora foi ela lembrar-se de ver passar o coronel Sawa, chefe do Kempeitai japonês, pela Porta do Cerco com a sua concubina, a qual em ‘A Amante do Governador’ se torna… a amante do governador. Ou seja, a senhora Aurora ‘viveu’ o romance que escrevi e viu as personagens em carne e osso. E o mais importante é que ela reconheceu no romance a sua vivência daquele tempo, reviu-se no que o livro descreve, e acreditem que não há maior tributo a uma obra literária do que esse”.
Aos 93 anos, Aurora tem, como se percebe, a memória intacta. De tal maneira que consegue até enumerar os factos do livro que não aconteceram na realidade: “correspondendo o livro, na sua maior parte, à realidade vivida no território, as principais ‘fantasias’ são: a chinesa de olhos azuis; e o romance do governador Gabriel Teixeira, um homem prudente e que sempre soube lidar com os japoneses, de forma a melhor proteger a colónia e a sua população. Os factos relatados, à excepção das mencionadas fantasias, entre outras, são absolutamente verdadeiros e não há qualquer exagero”. J.P.M.