“Fotos, não. Fotos, não. Párem com isso, já”

FOTOGRAFIA: EDUARDO MARTINS

Uns podem chamar-lhe paranóia, outros vão dizer que é segurança, e só segurança. Mas entre os jovens manifestantes de Hong Kong — que têm tomado a liderança dos protestos contra a lei de extradição — todos os sentidos estão alerta para detectar quem na multidão pode estar a tirar fotografias. O medo de que as imagens cheguem ao Governo chinês, e das represálias no futuro, comandam acções concertadas de revistas de telemóveis.

Texto: João Carlos Malta

Fotografia: Eduardo Martins

À saída do metro em Admiralty, Hong Kong, a Harcourt Road está semi-vazia, não passam carros. Dá-se uns passos em frente, e percebe-se que os manifestantes barricaram com baias de metal um e o outro lado da via. Mas um olhar mais atento para a direita, mostra que debaixo de uma passagem área de peões, um grupo de cerca de 200 pessoas cerca um rapaz pequeno, de óculos, com os olhos quase sempre no alcatrão. São vários os jovens que gritam com ele. Tudo está a ser filmado por telemóveis e câmaras de meios de comunicação social. O que é que se passa? A discussão segue alto e em bom som, em cantonês, por isso há que recorrer a alguém que possa traduzir. 

— “O que é que ele fez?”

— “Andava a tirar-nos fotos com uma máquina, e foi apanhado. Já anda aqui há muito tempo, e agora queremos que apague as imagens, mas ele não apaga”, explica um dos jovens que está ali a assistir a cena. 

— “Têm a certeza?”

— “Sim, ele estava a fazer planos próximos das nossas caras”, responde já um outro rapaz da pequena multidão, que acrescenta que aquela cena já dura há mais de uma hora.

Ainda faltam umas duas horas para aquele que prometia ser o evento do dia, mas que foi apenas uma nota de rodapé. A marcha anual organizada pela Frente Civil dos Direitos Humanos — marcada para o Victoria Park para assinalar a passagem de soberania da RAEHK do Reino Unido para a China — juntou 550 mil pessoas, mas foi a tomada do LegCo que se tornou no evento planetário a 1 de Julho. Não era para menos, um órgão de soberania tomado, e a anarquia dentro de um edifício em que os deputados foram substituídos por manifestantes. Três horas dentro do Parlamento deixaram um rasto de destruição, e cicatrizes para o futuro.

Um contra centenas

Mas voltemos ao fotógrafo não identificado, que alegadamente estava a tirar fotos aos manifestantes. A pressão do grupo ainda vai demorar mais uma boa meia hora.

—”Ele ainda não apagou?”

—“Não, ainda não. Eles querem ver o telemóvel, mas ele não mostra”, ajuda-nos a perceber outro jovem.

De repente, um dos elementos do grupo explode verbalmente na cara do suspeito, mas ele permanece impassível. Não aparenta mais de 25 anos, e parece aguentar com algum à vontade aquela pressão tremenda. Percebe-se depois que a multidão acredita que ele é um dos muitos infiltrados que supostamente vêm da China continental para tirar fotografias para depois as entregar às autoridades chinesas.

A situação parece que está prestes a resolver-se, quando o rapaz sai acompanhado por um grupo pequeno daquele viaduto, mas rapidamente se percebe que não é isso que vai acontecer. Vão apenas para um passeio lateral. A tensão mantém-se e só se vai desenlaçar horas mais tarde, depois de este suposto agente infiltrado ser posto no MTR, uma vez, e reaparecer para uma segunda tentativa. Nessa altura, houve uma erupção dos ânimos, talvez um eufemismo para o que se passou. Um grupo pequeno avista de novo este jovem, e um dos manifestantes pega numa garrafa de água e despeja-a em cima dele. Acto contínuo, faz-lhe uma gravata que o faz cair no chão, antes de, com mão aberta, lhe bater na cabeça. Os companheiros dizem que está tudo bem para os jornalistas que ali estão, e a cena só termina com o chinês a ser posto de novo na estação de Admiralty.

FOTOGRAFIA: EDUARDO MARTINS

É isto que eles querem

Uma rapariga, já na casa dos 30 anos, de pé em cima de um lancil que divide a estrada, comenta. “O que estás a ver aqui, repete-se muitas vezes. Há estes tipos que vêm para o meio dos manifestantes para criar problemas e inflamar os ânimos, e, claro, no meio de tanta gente, há sempre quem reaja desta maneira”, explica.

Esta foi a cena mais quente de um conjunto de episódios que se multiplicaram durante a tarde. Era frequente passar por grupos de jovens que, aos gritos e a esbracejar, diziam: “Fotos, não. Fotos, não. Párem com isso, já”. A frase era repetida à exaustão, sempre que alguém num prédio ou numa passagem superior apontava um telefone.

Mas este tipo de receio também promove alguns mal-entendidos, como o que Frank Cheng, de 64 anos, viveu. Mais tarde, contará que veio de Aberdeen, na Escócia, para se juntar aos manifestantes que lutam contra a lei que permitirá enviar fugitivos para a China interior. Está no meio da avenida e, como faz em muitas situações, saca do telemóvel para registar o momento. Mas ali esse comportamento banal não é aceitável. Um jovem de cara tapada e corpo atlético dirige-se a ele. A postura corporal é agressiva, o tom de voz também não esconde que não quer ter uma conversa de amigos. O manifestante fala em cantonês, mas Frank responde em inglês. Percebe que estão ali jornalistas e que esta é uma maneira de se defender daquela pressão, que diz ser inaceitável.

— “Tu não me dás ordens. Quem és tu para dizer o que posso fazer. Eu estive aqui em 2014 a apoiar os jovens, no Ocuppy Central, e estou aqui de novo para poder participar ao vosso lado. Isto é inacreditável”, grita Cheng.

Poucos segundos depois, junta-se ali uma pequena assembleia, à volta do sexagenário, na qual uma jovem tenta conciliar as partes. Depois de muita discussão, Frank acede em mostrar o telemóvel à rapariga. Ela dá o ok. Pode seguir. Não tem nenhum grande plano dos manifestantes.

“Penso que há um pouco de histeria, se a polícia quiser tirar fotos, eles podem fazê-lo através de meios que nós nem sabemos, eles podem tirar fotos de quem quiserem, há câmaras tão pequenas”, começa por explicar depois o homem que veio da Escócia, e que naquele dia voltaria a casa. Frank percebe que os ânimos estão à flor da pele, mas, ressalva, “não gosto que me digam o que posso e o que não posso fazer”. “Especialmente aquele rapaz que foi um bocado agressivo”, explica. “Ele começou a gritar, e senti que ele é um profissional disto que tenta marcar uma posição. Foi por isso que fiquei um pouco agressivo, foi mais um sentimento de repulsa em relação a este tipo de atitude”, concretiza.

Este homem que viveu parte da juventude em Hong Kong, o que justifica a ligação àquele lugar, diz que o comove que 95% das pessoas que ali estão sejam estudantes. “Isto significa que há esperança para esta cidade, sendo que acho que Hong Kong está a morrer de forma gradual. Em 1997, lembro-me de estar aqui e dizer que o Governo comunista ia cozinhar a cidade em lume brando. E a água está a ficar cada vez mais quente”, ilustra.

Frank entende que esta é uma das últimas oportunidades para as pessoas de Hong Kong dizerem: “Não gostamos do que nos estão a fazer”. Nesta visita, chegou à cidade a 16 de Junho, no pico dos protestos, e não tem dúvidas em dizer que o que vê a acontecer “é história”. “Pelo que vejo aqui, com o que os estudantes estão a fazer, significa que não vai ser tão fácil para o Partido Comunista Chinês impor o quer fazer.

Nem os jornalistas escapam

Mesmo os jornalistas são abordados pelos jovens, e num dos casos, um repórter com uma câmara profissional, depois de circundado por três manifestantes, apaga as imagens que tinha tirado. Chega a tirar os cartões da máquina para mostrar que não podia ter as imagens em nenhum outro lado.

Um caso que envolveu um fotojornalista de Hong Kong, que à data até era o presidente do sindicato que representa aquela classe, pode ter agitado as águas. Edwin Kwok renunciou após uma controvérsia em torno da sua conduta e de uma suposta colaboração com a polícia. A acusação mais grave contra Kwok era a de que ele tirou fotos dos rostos dos manifestantes, e as enviou à polícia. O fotojornalista negou a alegação, e o sindicato inicialmente argumentou que não havia provas suficientes para provar que ele o tinha feito.

Durante um fim-de-semana, as acusações foram amplamente partilhadas nas redes sociais e isso pressionou a que houvesse uma reunião naquele sindicato. Kwok acabou a admitir que houve “deficiências” no seu trabalho e apresentou a demissão, com efeito imediato. “O sindicato está desapontado com o incidente, que levou a opinião pública a ter dúvidas sobre os fotojornalistas, esperamos, no entanto, reconstruir a confiança com o público no futuro”, escreveu depois em comunicado o sindicato.

Muito sensíveis

Pouco depois de Frank ter passado pelo mal-entendido com o grupo de jovens, Ernst, um jovem que estudou Jornalismo na Austrália e é professor de línguas em Hong Kong, aproxima-se dele para enquadrar o que se passou. “Estamos muito sensíveis, porque há muitos que vêm da China continental para tirar fotos aos manifestantes. Isto para que depois o Governo faça o trabalho que tem de fazer”, começa por contar.

E depois explica o que quer dizer: “A polícia vai correr o Facebook e o Instagram, sei que é de doidos porque na realidade eles invadem a nossa privacidade”.

Ao PONTO FINAL, o jovem de 23 anos, diz que de manhã uma mulher foi apanhada a tirar fotos e a entrar e sair de uma esquadra da polícia. “Não permitimos que nos tirem fotos porque não queremos ter problemas e manter-nos seguros”, remata.

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Polícia quis proteger manifestantes ou ganhar vantagem na opinião pública?

A tensão durante a tarde de 1 de Julho em Hong Kong só teve um sentido: crescente. De um lado, fora do edifício, os manifestantes usaram tudo o que lhes aparecia à mão para entrar no LegCo. Dentro do Parlamento, havia mais de uma centena de agentes armados dos pés à cabeça. A brigada anti-motim estava a postos. Num jogo de paciência, em que quase só havia acção de um dos lados: a polícia foi vendo impávida e serena os manifestantes a destruir o exterior daquela infra-estrutura. Durante horas, mantiveram-se sempre firmes. O cordão parecia intransponível. Quando a força do grupo se moveu para a entrada principal, a força de segurança também se transferiu para o outro lado do edifício. 

Todavia, a presença desapareceu, naquele momento, de forma inexplicável, quando ocorreu a tomada final do centro do poder de Hong Kong. Desde logo, aquele facto gerou perplexidade e começou a correr a ideia de que a acção da polícia de deixar campo aberto aos manifestantes era muito suspeita. Porque teria a autoridade deixado cair na rua aquele símbolo do poder?

Ainda ontem, de madrugada, logo depois dos incidentes, o chefe da Polícia de Hong Kong, Stephen Lo Wai-chung, numa conferência de imprensa ao lado da líder do Executivo, Carrie Lam, foi questionado sobre a táctica policial. Lo defendeu que havia muitos manifestantes do lado de fora da entrada principal do LegCo, que estavam a usar tácticas violentas para rebentar com a porta de acesso ao lobby do edifício. A isso, somou-se, segundo o comissário, o ambiente no local que dificultou o uso da força que poderia ser usada em campo aberto.

“E em terceiro lugar, descobrimos que havia manifestantes a mexer na caixa eléctrica e que algumas das luzes se tinham apagado. Tememos um apagão total, e tive receio de que houvesse confrontos violentos ou talvez um movimento errado de qualquer um  dos lados ”, disse Stephen Lo Wai-chung. “Por último, mas não menos importante, eles atiraram uma fumaça branca para dentro do edifício. Já antes, havia ocorrido um ataque tóxico sobre os meus oficiais, portanto, sem saber se se tratava de outro ataque tóxico, não tínhamos outra escolha senão recuar temporariamente da LegCo”, justificou.

Alguns analistas, citados pelo South China Morning Post, acreditam que a “polícia evitou actuar para evitar mais confrontos” e “deixar que se clarificasse quem eram os manifestantes violentos, e os manifestantes pacíficos”. Já Steve Vickers, CEO da SVA, uma empresa que avalia o risco, citado pelo mesmo jornal, pensa que a polícia aguentou ao máximo para avaliar quais eram as intenções dos “amotinadores”. “Eles também quiseram que a opinião pública tivesse uma imagem clara que quem são estes manifestantes e de que tipo de acções são capazes”, explica. “Assim, quando a polícia finalmente actuou, facilmente teve a compreensão do público”, acrescenta Vickers.

No interior do LegCo, um dos manifestantes, na altura da tomada do hemiciclo já confidenciava ao PONTO FINAL desconfiar das intenções da Polícia ao deixar que a multidão invadisse o edifício. “Acho que nos deixaram entrar de propósito, para que a nossa imagem ficasse deteriorada para a opinião pública”, afirmou Ben, de 21 anos. Ele preferia que tivesse ocorrido outro desfecho: “A melhor coisa que nos podia ter acontecido, era que nos impedissem de entrar com gás lacrimogéneo. Mas esta é a estratégia deles para nos prejudicar”, rematou.

A Polícia esteve debaixo de fogo da opinião pública durante quase duas semanas, depois de, a 12 de Junho, ter lançado tantas rondas de gás lacrimogéneo como em todos os mais de dois meses que durou o Ocuppy Central, em 2014. Além disso, houve disparo de balas de borracha e gás pimenta. No final, registaram-se 72 feridos a necessitar de tratamento hospitalar e uma morte. Os manifestantes exigem uma investigação independente à actuação da polícia, mas o Governo já disse que isso não ia acontecer. J.C.M.

 

 

 

 

 

 

 

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