Os Portugueses em Macau julgam as outras comunidades locais como sendo fechadas, quando, concluiu uma investigação académica, o que se verifica é o fechamento destes imigrantes na sua própria comunidade. A não aprendizagem da língua chinesa é o maior factor de perturbação, diz uma tese de doutoramento apresentada em Lisboa, após dois anos de pesquisa na RAEM.

João Paulo Meneses
“A comunidade portuguesa de Macau: integração e (re)construção identitária na história recente” é o título de um artigo científico publicado recentemente pela antiga docente da Universidade de São José, Inês Branco. A agora professora na Universidade de Coimbra procura, neste trabalho sobre a comunidade portuguesa de Macau, “perceber como se integra actualmente na região, tendo em conta dois acontecimentos marcantes na história recente. Um, na região de acolhimento – a entrega do território à República Popular da China, em 1999; outro, no país de origem – a crise económica iniciada em 2008”.
Na base do artigo está o trabalho de campo realizado em Macau por Inês Branco para a sua tese de doutoramento, em que teve a oportunidade de realizar 24 entrevistas a Portugueses emigrantes em Macau. A autora procura ainda “entender como se redefine identitariamente uma comunidade em mudança num território que procura, também ele, uma nova identidade.”
“A nível pessoal, [o que mais me marcou] foi a facilidade com que um português se pode adaptar à vivência no território, desde que consiga viver numa bolha (a comunidade portuguesa ou internacional). O reverso da medalha é a dificuldade em encontrar alguém que não seja já conhecido de outro alguém”, explica a autora ao PONTO FINAL. “Quanto à investigação, foi conseguir explicar o porquê de, sendo uma comunidade fechada e em que quase ninguém fala as línguas de acolhimento (mandarim e cantonês), conseguir vingar no território”.
(Não) Aprender chinês
A questão da aprendizagem do chinês é um dos temas mais debatidos no trabalho de Inês Branco. “Quem estudou em Macau e aprendeu um pouco que fosse de cantonês, ou quem tenha feito amigos chineses, não estranha tanto a cultura. É a ideia do ‘outro’ diferente de ‘nós’ que leva a certos comportamentos”, explica ao nosso jornal.
Na sua tese de doutoramento, uma das entrevistadas em Macau afirma: “Acho que os macaenses ou chineses de Macau sentem muito mais essa invasão dos chineses da China continental do que eu como portuguesa que vivi sempre em Macau, porque de alguma forma acho que eles, que falam a mesma língua e que comem a mesma coisa, que se entendam, é um pouco assim. Claro que me chateia as ruas estarem muito mais sujas e estarem desagradáveis porque têm muita gente (…). Claro que me chateia os turistas que cá vêm da China continental, ou que aqui se radicaram, terem um nível de educação que está bem abaixo daquele que entretanto já se vivia em Macau, mas não me chateia particularmente eles serem chineses, eles serem daquele país que afinal manda aqui nesta regiãozinha”.
Inês Branco explica que “nesta citação de C.J., uma imigrante portuguesa que vive em Macau desde os seis meses de idade, está particularmente exacerbado o discurso do ‘nós’ e do ‘eles’. No ‘nós’ engloba os portugueses de Macau, ‘não é uma guerra nossa’. No ‘eles’, do outro lado, estão os chineses de Macau e chineses da China continental, um conjunto de pessoas com características que considera essencialmente parecidas ‘falam a mesma língua e comem a mesma coisa’.
Xenofobia? A investigadora acha que não. “Acho que, por não saberem a língua e não conhecerem a cultura local, alguns portugueses sentem que a comunidade local é fechada, mas se eventualmente aprendessem a língua, esta distância encurtar-se-ia. É um círculo vicioso, não aprendem a língua, não aprofundam o conhecimento sobre a cultura local, não se integram na sociedade mais lata, sentem-na fechada e desmotivam-se na aprendizagem da língua”.
Outro argumento importante tem a ver com “o facto de muitos chegarem para contratos de apenas dois anos, para os quais saber mandarim ou cantonês não é crucial, o que faz com que esses portugueses não se lancem na empreitada da aprendizagem das línguas. Só que depois o temporário transforma-se em permanente e muitos arrependem-se de não ter logo começado a aprender”.
Ao longo da sua investigação a autora confrontou-se ainda com a necessidade de ter de distinguir, “entre chineses de Macau, chineses da China continental e macaenses. Em relação aos chineses da China continental encontrei mais esse tipo de comportamento. São os chineses culpados pelas ruas cheias de gente, são aqueles que têm hábitos que, como disseram alguns entrevistados, ‘já não se viam em Macau’, os que saem directamente dos campos de arroz para os casinos… ainda assim, os próprios chineses de Macau dizem isto em relação aos da China continental”.
“Nós e os outros”
“Nós e os outros” é precisamente o nome de um dos capítulos da tese de doutoramento de Inês Branco (“A importância dos media e da língua de acolhimento na integração de imigrantes: Estudos de caso: a comunidade nepalesa de Portugal e a comunidade portuguesa em Macau”).
“Em especial para os imigrantes residentes em Macau desde antes de 1999, a presença ou a chegada de um novo ‘outro’, os chineses da China continental, vem ameaçar-lhes o que já tinham definido como o seu espaço identitário, onde a sua vivência era feita de uma determinada forma. É como que um ataque à sua auto-estima enquanto elementos de uma comunidade que era considerada superior às outras, porque anteriormente governava uma região que é hoje governada pelo país de origem daqueles que consideram ter um nível de educação inferior ao seu”, mais uma ideia retirada da investigação. “Enquanto comunidade, o ‘outro’ menos educado mas do país de acolhimento, obriga a uma redefinição; enquanto indivíduo, a sua própria identificação é posta em causa e obriga igualmente a uma redefinição”.

“Sabe por que é que eu não me sinto estrangeiro? Porque eu acho que as pessoas olham para mim e vendo que eu sou português também não me sentem estrangeiro, quer dizer, é ‘aquele quisto que a gente aqui tem não sei há quantos séculos’”, é outra das citações retiradas das entrevistas.
“Os imigrantes que se consideram portugueses, mas não estrangeiros em Macau, identificam-se como pessoas de Macau. Ser pessoa de Macau é sentir que se pertence a Macau e essa sensação de pertença surge, por um lado, de um sentido de dever, de responsabilidade cívica com Macau, de não estranhar os costumes de Macau e, mais do que isso, de se identificar mesmo com eles. Por outro lado, surge, simultaneamente, dos direitos que Macau confere aos portugueses exactamente por serem portugueses. Este sentimento de pertença, de envolvimento pela sociedade e, ao mesmo tempo, de reconhecimento, fazem de Macau uma sociedade culturalmente diversa, mas coesa nessa diversidade,” afirma Inês Branco.
Uma questão de identidade
A identidade da comunidade Portuguesa em Macau é um dos tópicos essenciais na investigação de Inês Branco. Ao PONTO FINAL explica que, relativamente à amostra da sua pesquisa, “mais uma vez, há que distinguir entre os chegaram a Macau antes de 1999, depois de 1999 e os que saíram e voltaram. Na minha investigação não dividi mais, mas diria que há ainda os que chegaram depois do início da crise económica (2008). É, sobretudo, nos que chegaram a Macau antes de 1999 e que permaneceram ou que saíram em 1999 mas depois regressaram, que se nota mais essa crise identitária”.
Mas qual é o papel da comunidade portuguesa na Macau actual? “Macau é um ponto de cruzamento entre Ásia (China) e Europa (Portugal), os traços da cultura portuguesa em Macau são indeléveis. A língua portuguesa, que é ainda língua oficial e é usada na administração pública e nas tabuletas nas ruas, a arquitectura, um modo de viver associado à presença dos portugueses durante mais de 500 anos, tudo isso faz parte da identidade de Macau. O papel da comunidade portuguesa é de manutenção destes traços, é não deixar que eles se apaguem”.
“Quanto aos que chegaram mais recentemente, pelo facto de já não terem vivido em Macau ainda durante o período de administração portuguesa, numa Macau bastante mais marcada pelo modo de vida português, poderão já não conseguir manter vivos estes traços culturais. No entanto, inerente ao conceito de identidade está a própria ideia de reconstrução. Enquanto comunidade imigrante, os portugueses serão sempre um caso peculiar, devido à sua história na região e à história da região ligada para sempre aos portugueses,” diz ao PONTO FINAL.
Inês Branco termina a sua tese com estas ideias: “Quanto à comunidade portuguesa em Macau, a forma como vê as comunidades locais parece estar fortemente condicionada pelo facto de a grande maioria dos seus membros não saber falar Cantonês nem Mandarim e pelas próprias circunstâncias históricas do domínio português sobre esse território, que a coloca numa posição particular em termos de capital linguístico e necessidade de o alargar. Julga essas comunidades locais como sendo fechadas, quando o que verificamos é o próprio fechamento destes imigrantes na sua própria comunidade. A dificuldade em aprender línguas tão distantes da sua língua materna e a evidência de que não é preciso sabê-las para conseguir um emprego contribuem para este ciclo vicioso. Não aprendem porque é difícil e moroso – ficam limitados a falar com membros da comunidade ou das outras comunidades através da língua franca, o Inglês – não conhecendo melhor as comunidades locais sentem-nas fechadas – como pensam não haver abertura para conhecê-las melhor e à respectiva cultura, cujos hábitos consideram muito peculiares, não cultivam o interesse pela aprendizagem das línguas e investem o seu tempo noutras actividades”.
Dois anos em Macau
Inês Branco apresentou a sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação, ramo de Ciências Sociais (“A importância dos media e da língua de acolhimento na integração de imigrantes. Estudos de caso: a comunidade nepalesa de Portugal e a comunidade portuguesa em Macau” – online no Repositório da Universidade Nova de Lisboa) em 2015.
Foi o culminar de um percurso iniciado em Março de 2013 como investigadora visitante no Departamento de Língua Portuguesa da Universidade de Macau. No âmbito do doutoramento, esteve envolvida num projecto sob orientação da professora Maria José Grosso, sobre a aprendizagem da Língua Portuguesa por aprendentes de língua materna chinesa.
Em Setembro do mesmo ano passou a desempenhar as funções de leitora a tempo integral de Português Língua Estrangeira na Universidade de São José (Faculdade de Humanidades), tendo leccionado Português Língua Estrangeira. O contrato de dois anos terminou e Inês ainda tentou ficar em Macau, com experiências no Jornal Tribuna de Macau e no IPOR.
Regressou a Portugal quando conseguiu um contrato na Universidade de Coimbra, como professora auxiliar convidada na área de Português Língua Estrangeira, onde está neste momento. Continuar a investigar Macau não está fora dos seus planos, mas “não tenciono voltar a trabalhar e viver em Macau, seria como um regresso ao passado, acho”. J.P.M