A grande procissão dos macaenses

P1030049Amanhã dia 16, realiza-se mais uma vez a grande manifestação de fé da comunidade macaense, residente e da diáspora. É a procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos.

Fernando Sales Lopes

Macau é terra de liberdade, de respeito mútuo. Terra onde as gentes vivem e convivem na diferença. O cristianismo está aqui bem presente lado a lado com as festividades da religião popular chinesa, que abarca práticas e crenças do Budismo, Confucionismo e Taoismo.

O catolicismo seguido por cerca de 30 mil crentes, maioritariamente chineses, é mesmo um dos factores identitários da comunidade macaense. A Diocese de Macau, criada em 1576 foi a primeira do Extremo Oriente.

Património de Macau, alargado à própria comunidade não cristã, é a Procissão de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos.

A procissão

No sábado véspera do primeiro domingo de Quaresma, ao fim do dia e ao som da Banda da Policia de Segurança Pública de Macau, sai da Igreja de Santo Agostinho em procissão até à Sé Catedral, onde passará a noite, a imagem do Senhor Bom Jesus dos Passos, coberta por uma cortina de renda bordada a fios de ouro.

No domingo, pela tarde, com o sermão do Pretório seguido do canto de Verónica, parte da Sé a imagem do Senhor, agora descoberta, percorrendo o centro histórico de Macau

Vivem-se as sete das catorze estações da Via-sacra, que representam o percurso de Jesus Cristo do Pretório ao Calvário. A procissão termina com o sermão do Calvário, já com imagem na Igreja de Santo Agostinho.

Em Macau, contrariamente ao que é habitual nas outras procissões dos Passos, não há o habitual encontro das imagens do Senhor com Nossa Senhora, sua mãe. Esta é uma característica que diferencia o culto do Senhor dos Passos em Macau. Mas não se pense contudo não ser aqui bem forte o culto Mariano.

A questão da data em que a celebração se realiza é outra das diferenças que a tornam, talvez, única.

Não há, no calendário da Igreja Católica, uma data certa para a realização da procissão dos Passos. Pelo menos é o que a prática confirma, embora se saiba que entre os séculos XIV e XVIII, em Portugal ela se realizava na Quinta-Feira Santa. Encontramos procissões dos Passos desde a segunda à quinta semana de Quaresma.

A originalidade do Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos em Macau é que a procissão tem início no sábado anterior ao primeiro domingo de Quaresma, dia em que termina.

Agostinhos e o culto da Paixão de Cristo

 

Foram os Agostinhos espanhóis, vindos das Filipinas, que em 1586 terão introduzido, em Macau, o culto da Paixão de Cristo, nomeadamente a procissão dos Passos.

A procissão do Senhor do Passos em Macau transcende o seu significado religioso. Em 1717, com a saída dos Agostinhos para Goa, a procissão deixou de se realizar. Nos anos seguintes verificou-se carestia e falta de alimentos em Macau.

A população chinesa atribuiu a situação ao facto de não se realizar a procissão, tendo requerido ao Procurador do Senado “que fizesse andar pelas ruas aquele homem de pau às costas”, assim lhe chamavam.

E, mais prontificaram-se a arcar com todas as despesas. Estávamos em 1721, e o Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos continua a sair anualmente, pela fé de uns e a crendice de outros. (ver caixa)

No século XIX, na sequência da extinção das Ordens Religiosas, a igreja de Santo Agostinho é entregue à Confraria de Nosso Senhor do Bom Jesus dos Passos, que tinha sido fundada pelos Agostinhos portugueses quando chegaram a Macau. A Confraria toma posse da Igreja e das casas anexa em 1887.

Confraria que é, ainda hoje, responsável pela realização desta procissão.

Imagem expressiva

A imagem do Senhor Bom Jesus dos Passos, já não é a original. No século XIX a que era usada para a procissão foi enviada para Timor para aí cumprir a sua função, sendo substituída por outra, vinda de Paris, e oferecida pelo Conde Bernardino de Senna Fernandes, tesoureiro da Confraria. Mas é uma bela imagem. Bem expressiva. Uns olhos profundos que nos fitam, num rosto endurecido pelo sofrimento.

Lendas e práticas

Há uma lenda, com várias versões, para justificar o passeio do Senhor dos Passos, e que conta que em tempos idos a imagem era colocada na Sé, mas miraculosamente, voltava sempre a Santo Agostinho.

Costume antigo, hoje por poucos praticado ou esquecido, era o de abrir as portas à passagem da procissão, acendendo velas e queimando incenso num pequeno oratório virado para a rua.

Superstição, crendice, fé? Uma mistura de tudo isto numa terra multicultural e intercultural.

Os macaenses – os Filhos da Terra – descendentes dos primeiros portugueses que arribaram ao Extremo Oriente há cinco séculos, frutos da rica mistura de povos e culturas são os guardiães de tradições e saberes que estruturam a sua identidade própria.

Chá gordo na Quaresma

 

A Páscoa não justifica para os macaenses qualquer tipo de menu ritual. A festa parece restringir-se às manifestações religiosas nos templos e em público, como é o caso da tradicional e concorrida procissão do Bom Jesus dos Passos que, ainda hoje, traz para a rua não só os católicos locais, como até os da diáspora que, para o efeito se deslocam até Macau, mas também a população não católica, que assiste a estes cerimoniais com profunda admiração e respeito.

 

Na literatura de Macau, apenas Senna Fernandes se refere à mesa, ao recordar o seu avô: “Crente, sem ser beato, raça que detestava, tinha especial devoção por Nosso Senhor dos Passos. Na Procissão da Cruz, acompanhava o calvário do Senhor, com o respeito e a compunção dum pecador arrependido, desde Sto. Agostinho até à Sé vestido de preto, a rigor. No dia seguinte, domingo, dava um magnífico chá gordo para os convidados verem passar a procissão, costume este tão tradicional de Macau.”

Sendo que esta prática pudesse encontrar alguma justificação, por se entrar a partir daí num período de jejum, mais ou menos rigoroso, conforme a devoção ou a resistência de cada um, a verdade é que não há outra referência que a confirme.

Devoção na diáspora

Levada pelos macaenses que emigraram no séc. XIX para Hong Kong e outros portos da China, a devoção ao Senhor Bom Jesus dos Passos, ainda hoje perdura.

Em Hong Kong, no segundo domingo de Quaresma realiza-se na Catedral uma procissão organizada pela Confraria do Senhor dos Passos. Em Kowloon, na Igreja do Rosário, e coincidindo com as novenas de Macau e Hong Kong, é exposta durante uma quinzena a imagem do Senhor dos Passos.

Mas a procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos parece ter uma força mobilizadora especial. Vir dos quatro cantos do Mundo ver, ou viver, este acto religioso, tem uma marca peregrina.

Peregrinos que, para além da diáspora macaense vem, não apenas da China interior e de outros países do sudeste asiático, mas também da Europa, América do Norte, ou Austrália.

Um encontro marcado com amigos e familiares chova ou faça Sol.

A menina Verónica

O papel de Verónica, a mulher que limpou com uma toalha o rosto de Cristo, e que nela ficou estampado, era bastante disputado na sociedade macaense, sendo a escolhida motivo de orgulho para a família.

Há variadíssimas referências na imprensa, ao logo dos tempos, com destaque para o Boletim Eclesiástico, a essas “encantadoras” meninas, que se queriam virgens, boas cristãs e com voz maviosa:

“Foi a esbelta e esperançosa menina Celeste Cabral, filha do Ex.mo. Sr. Carlos Cabral que tão amavelmente quis ir personificar aquela santa mulher que na dolorosa via do Calvário saiu ao encontro de Jesus a enxugar-lhe o divino rosto”

“Bem haja a menina Celeste Cabral pois é um acto que muito honra a sua Ex.ma. Família”, rematava o redactor do Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau de Março de 1919, elogiando a Verónica desse ano..

50 anos depois, em 1969, com menos retórica mas igual destaque, e com direito a foto, na mesma publicação, era a vez da menina Luísa Gageiro, que “muito bem se desempenhou do seu papel”.

O Homem do Pau às Costas

Num códice do séc. XIX, encontrado na Biblioteca de Évora, sobre “vários factos” de Macau no período de 1553-1748, e reproduzido por Jack Braga no Boletim Eclesiástico, pode ler-se:

“Aos 14 de Fevereiro de 1721 houve nesta cidade uma grande carestia pela falta de mantimentos e os chineses atribuindo isso ao facto de se não fazer a procissão dos Passos, requereram ao Pró. Curador do Senado para que fizesse andar pelas ruas aquele homem de pau às costas (palavras deles), oferecendo-se para os gastos”.

 

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